Cláudia Bastos é advogada, interessa-se pela área da psicologia, mas confessa não saber viver sem a música. Pelo que conta em entrevista à Aveiro Mag, é bem provável que este gosto tenha surgido logo nos primeiros anos de vida. As memórias mais antigas remontam ao infantário e às canções de José Barata-Moura – autor de êxitos infantis como “Joana come a papa”, “Olha a bola, Manel”, “Era uma vez um rei” ou “Fungagá da Bicharada” – que por lá terá aprendido a trautear. Ainda assim, é aos sete anos que a música (quase literalmente) lhe bate à porta.
“Bateram à porta da casa dos meus pais e perguntaram se eu quereria aprender música”. Está mesmo a ver-se qual foi a resposta de Cláudia. Os pais não se opuseram e a pequena começou, logo aí, a sua formação musical. Quando, três anos depois, entra para o Conservatório de Música de Aveiro, já Cláudia levava as bases teóricas e alguma prática de clarinete. Anos depois, a aveirense viria a concluir o oitavo grau do Conservatório naquele instrumento.
Naquela altura, não existia ensino articulado, mas nem por isso Cláudia descurou os estudos. Além de concluir o Conservatório de Música, licenciou-se em Direito e, hoje, aos 47 anos, continua a dividir-se entre o exercício da advocacia e a música.
Nos anos de 1990, fez parte da Orquestra da CEE, participando em digressões internacionais, teve a oportunidade de subir a palco com músicos de várias nacionalidades e perante alguns dos mais conceituados maestros. O ensino surge logo a seguir. Cláudia começa por dar aulas na escola de música da Banda Amizade, coletividade aveirense que integrou durante largos anos e, mais tarde, também nas atividades extracurriculares no município de Águeda.
Em 2015, participa em “Músicos de Fraldas”, um programa de formação para profissionais no âmbito do ensino artístico para a primeira infância, orientado por Paulo Lameiro, na Sociedade Artística Musical de Pousos, em Leiria. É na “Músicos de Fraldas” que a aveirense lida, pela primeira vez, com o universo da música para bebés.
No final da formação, em conversa com Paulo Lameiro, Cláudia terá partilhado que, no seu entender, “cada cidade devia ter uma escola dedicada à educação pelas artes”. A resposta do maestro não podia ter sido mais desconcertante: “Vai para a tua cidade e trata disso”. Assim foi.Motivada pela sua antiga paixão pela música e pelos anos de ensino, fascinada pelos novos horizontes que aquela formação lhe abrira, ao regressar a Aveiro, Cláudia funda a EducArte para promover uma educação pelas artes desde a gestação até à terceira idade.
Na EducArte, a base é a música, mas o objetivo sempre foi aliá-la a outras formas de expressão artística como a dança, o teatro, o conto ou a pintura. A escola trabalha principalmente com crianças entre as três semanas de vida e os seis anos de idade, proporcionando-lhes um ambiente em que a partilha de afetos e emoções se alarga à família e ao grupo e se procura um desenvolvimento equilibrado das suas aptidões expressivas. O objetivo é “proporcionar aos bebés uma experiência regular e orientada com vivências artísticas e expressivas conduzidas pela música”, pode ler-se num folheto informativo da escola. Na EducArte, a terapia da música também é aplicada às a grávidas a partir do quarto mês de gestação, numa altura em que o ouvido do feto já está formado. Cláudia explica que, à medida que as sessões decorrem, o bebé, ainda no útero materno, começa a reagir aos sons e a desenvolver diferentes estímulos consoante o que ouve. Além disso, “temos vários casos de bebés cujas mães, ainda grávidas, participaram nas nossas sessões e nota-se que a música lhes está intrínseca. É-lhes familiar”, partilha.
A EducArte desenvolve igualmente atividades em lares, centros de dia e unidades de cuidados continuados. Mas se as crianças reagem aos sons, começam a despertar para aquilo que os distingue e repetem as sequências tocadas ou cantadas, desenvolvendo a sua capacidade de expressão, o trabalho com seniores é um pouco diferente. “Os estímulos são diferentes. Nos idosos, é veículo para despertar emoções, para avivar memórias e para interagirem”. Por muito antigas que sejam, a EducArte tenta sempre trazer as canções que os seniores lhes pedem, cantando e tocando com eles.
Este é um ofício que lida de perto com as emoções e, ao longo dos anos, são já inúmeras as vivências que Cláudia guardou na memória, pequenos episódios que a comoveram ou histórias de superação que não deixam dúvidas sobre o poder inspirador da música. “Há crianças com trissomia 21 que, logo numa primeira sessão, vêm para o nosso colo e tentam tocar órgão ou usar as maracas”, regista; há também o caso de “um senhor de 103 anos, no lar de Vilar, que raramente se levantava da cadeira onde passa os dias e, à medida que as sessões foram decorrendo, começou a dançar de pé”, relata, a título de exemplo. “É muito gratificante”, acrescenta.
Na EducArte, Cláudia conta com a colaboração do músico e professor Edgar Manuel. Há sessões em que um toca e o outro interage com as crianças ou os seniores e dinâmicas em que ambos fazem um pouco de tudo. Por altura da fundação da EducArte, Cláudia encontrou em Edgar alguém que “abraçou o projeto e vestiu a camisola”, tanto que hoje não tem dúvidas ao afirmar: “O Edgar sente a EducArte como eu”.
Quando, naquele inverno de 2015, telefonou a Edgar para o convidar a integrar este projeto, o músico terá estranhado a proposta. Afinal, nunca até então tinha dado aulas a bebés ou a grávidas. Ainda assim, não recusou o desafio.
À semelhança de Cláudia, também Edgar aprendera a tocar muito novo. Se ela tem no clarinete o seu instrumento de eleição, no caso de Edgar a paixão divide-se entre o acordeão e o piano. Aos 14 anos, já Edgar era acordeonista e vocalista no grupo Mundo Novo, um conjunto de música popular fundado pelo pai, Manuel Sousa, que viria a celebrizar “Apita o Comboio”, “Mexe, mexe mexilhão”, entre outros temas. Ainda jovem, Edgar entra para o Conservatório de Música de Águeda para estudar piano e, mais tarde, torna-se professor de música em várias escolas públicas e privadas. É, precisamente, no âmbito das atividades extracurriculares do agrupamento de escolas de Águeda que vem a conhecer Cláudia.
Há já alguns anos que Cláudia aspirava gravar um álbum com temas originais para crianças e, no ano passado, o despontar da pandemia veio dar o empurrão que faltava para que o projeto saísse da gaveta e essa vontade antiga se pudesse concretizar.
Editado pela Sana Editora, “Arco-íris de Canções”, da autoria de Edgar Manuel e Cláudia Bastos, é um material didático “três em um”: é um livro de canções, com oito temas originais, que vem acompanhado por um CD, bem como com um código QR para os utilizadores que não possuam um leitor de CD possam ouvir os temas na internet. O livro conta ainda com uma terceira componente: uma série de atividades lúdicas que desafiam as capacidades dos mais novos.
De acordo com Cláudia, este “Arco-íris de Canções” é “espelho das dinâmicas que a EducArte desenvolve com as crianças”. “Da mesma forma que as sessões ao vivo têm uma dinâmica própria, um fio condutor que começa com uma saudação e segue, pela via da música, por várias temáticas, assim é o livro”, explica, dando conta que as canções deste livro-disco versam assuntos como as notas musicais, as árvores de fruto, a mobilidade ciclável ou a importância de usar óculos.
Desde o lançamento, em dezembro último, o feedback tem sido excelente. Feito a pensar nas crianças e nos pais – “É para as famílias”, garante Cláudia –, a verdade é que já vários profissionais ligados ao ensino da música, à educação na infância e à terapia da música mostraram interesse e elogiaram o projeto.
Os meses de confinamento e as medidas de distanciamento implementadas desde março do ano passado, obrigaram a EducArte a cancelar várias sessões. O “imprescindível contacto” com o público está limitado às condicionantes de segurança e, apesar de, obviamente, estar consciente da situação e cumprir todas as regras, esta é uma conjuntura que preocupa Cláudia. “É pelo contacto com os bebés, as crianças ou os idosos que nós percebemos quanto o nosso trabalho está ou não a surtir efeitos. Esse é mesmo um ponto fundamental.”, esclarece.
Cláudia mantém a esperança de, tão rápido quanto o evoluir da pandemia e as orientações das autoridades de saúde o permitam, retomar as sessões presenciais, bem como realizar finalmente uma viagem muito especial. No ano passado, a EducArte foi convidada para ir a Cabo Verde para as comemorações do Dia Internacional da Criança. “Souberam da nossa atividade através das redes sociais, iam acompanhando o nosso trabalho, e contactaram-nos a convidar para irmos desenvolver algumas sessões em junho do ano passado. Ficou adiado. Iremos, talvez, em outubro deste ano”, conta Cláudia.
Cláudia é advogada há 25 anos e, para si, o Direito já não tem grandes segredos. No que à música diz respeito, todavia, a sua “missão está longe de estar terminada”. Além da atividade normal da EducArte, concluir o mestrado em musicoterapia é uma das suas ambições mais prementes e lutar pelo reconhecimento da profissão de musicoterapeuta, a sua causa maior. “Este é o ponto em que a Música e o Direito se alinham”, reitera.
Cláudia explica que ainda há muitas instituições de saúde, de educação para a infância ou de residência para idosos que desvalorizam a terapia da música, considerando-a tarefa menor e ao alcance de qualquer animador não-qualificado.“Quando entramos num hospital, temos de o fazer quase às escondidas (...) E ao apresentarmos a mais-valia dos nossos serviços , respondem-nos que não somos necessários porque as educadoras cantam para as crianças”, desabafa.
Ora, “a educação do ser humano no domínio das artes vai muito além de cantar uma canção”, manifesta a advogada. “Ao fazermos as sessões, introduzimos conceitos musicais: o ritmo, o timbre, as notas, a altura, o som de cada instrumento, as suas particularidades”, expõe. E se, à primeira vista, um projeto pedagógico na área da musicoterapia pode, muitas vezes, assemelhar-se a uma brincadeira, o facto é que, quando desenvolvido por profissionais qualificados, trata-se de um “trabalho sério que traz benefícios para os utentes, sejam eles crianças, seniores, pessoa com necessidades especiais ou patologias associadas”, assegura Cláudia Bastos.