O homem de abril despira a farda verde. O vestuário militar disperso pelo chão da camarata do quartel e ele percebia no reflexo do espelho as mazelas no corpo emagrecido e o caroço que antes fora azeitona. Tivesse sido o azeite espremido, derramado somente como metáfora, e o sangue estaria a circular pelas veias dos camaradas de armas e estariam todos vivos, um deles a sentar o filho ao colo, a afagar os cabelos compridos da mulher que o esperou deste lado nortenho do oceano, que dormiu sozinha na cama de casal, com os sonhos e o medo a flutuar, em conflito, no quarto com o teto humedecido a aguardar o tempo seco do verão para ser pintado.
O homem de abril tirara a boina castanha da tropa com as fitas verde e vermelha que pendiam sob a nuca. Olhava-a na prateleira do armário em que cabiam as lembranças dos dois anos de serviço em África e depois empurrava a porta de madeira clara e rodava com os dedos a minúscula chave branca para a saber encerrada. Ficariam lá dentro as trovoadas no mato, os olhos dos cães esfaimados, o olhar pedinte dos animais famintos, a cegueira da selva, a invisibilidade dos atiradores nas emboscadas e as balas que silvavam como insetos. Pudessem estar ali engavetados, na mobília, os ecos da guerra, os estertores dos feridos graves, a voz de comando filtrada pela pedra do receio no caminho da garganta, os vitupérios lançados aos inimigos, a revolta contra os medalhados que decidiram tomar o seu tempo, a sua vida, o seu suor, para ganhar mais rodelas de heroísmo, triunfos obtidos na messe de oficiais com a lareira acesa e whiskies a refulgirem dourados nos copos de cristal laminado.
O homem de abril estava lá a confirmar o fim dos impérios, a ver as páginas dos livros de doutrinação histórica voarem empurradas pelo mesmo vento ensandecido que as espalharia pelos continentes do planeta. Sentado no sopé do padrão com as armas portuguesas, ofereceu um cigarro ao homem de tez negra que o aceitou e fumou-o a seu lado. Afinal, quem agora era o escravo?, - perguntou-se. Condenados às galés, às estrebarias, à condição de gado humano, ao trabalho sem retribuição, somente porque a cor da pele é distinta. Como se a aventura humana fosse fundada na ironia da aleatoriedade das cores. A civilização ser uma construção estética parecia-lhe absurdo. Tanto mais, as cruzes cristãs nas caravelas, que sulcaram os oceanos, anunciavam a chegada e a partilha dos mandamentos bíblicos, o que se deve ou não fazer, uma ética humana, o evangelho de Jesus.
O homem de abril plantou um cravo no cano da espingarda, e a flor trazia o cheiro do jardim cuidado, a fragrância da vitória da democracia. O homem desceu a Avenida da Liberdade e aprendeu que tinha voz e com outras mais podiam em coro construir um clamor, gritar pela esperança, ter uma palavra a dizer sobre o futuro comum. Olhou para o alto e os céus de abril traziam promessas de primaveras proveitosas, de semeaduras que retribuiriam “a paz, o pão, a habitação, a saúde, a educação”. As águas mil desse abril jorraram pelas fontes, irrigaram os campos de trigo, de milho, os pomares, as hortas e as planícies das folhas em que a filosofia podia especular sem censura, a política podia ser dialética e livre, a arte podia ousar dispensando a voyeurista sombra do pecado.
O homem de abril voou enquanto, atrás das janelas, espreitando pelas cortinas, já o cinismo ciciava: “a passarada vai assentar”. Voltariam aos ninhos no fim do verão quente os passarinhos conformados com a magra coleta de cereais que traziam dos seus bicos às bocas entreabertas dos pardais recém-nascidos. Os filhos a pedirem-lhes o ramo acima da árvore, a casa nova com vista mais desafogada para a paisagem envolvente, a perguntarem quantos pretos tinha morto, a cansarem-se das histórias do mato que atrasavam a comodidade do sofá em que seguiam o enredo da novela brasileira que a televisão exibia e era tomado com a mesma distração do barbitúrico que o médico aconselhara a engolir com água três horas antes de o paciente se deitar.
O homem de abril persistiu na largura boca-de-sino das calças, mas mudam-se os tempos e cambiam as modas, por ora os anacronismos da indústria têxtil resignam-se a peças de história e da sociologia do efémero. Os utilizadores dos velhos panos são os humanos perdidos no tempo ou os perdedores das batalhas que preferiram restar no passado. Tornaram-se memórias inúteis, seres desadequados do método do mérito das tarefas cumpridas, inadaptados às sociedades da competitividade, relógios de corda ruidosos que não se converteram em práticos e silentes mostradores digitais.