Precisando de uma caneta, entrei numa papelaria para me abastecer. Saio de lá com uma e com um livro de Danielle Steel (DS). No balcão repousam revistas, chicletes, isqueiros e uma fiada de livros da “autora favorita dos leitores em todo o mundo”, como se lê num selo na capa de “Magia em Paris”. Uma nota adicional informa: “mais de mil milhões de livros vendidos”. Na contracapa, a “mais amada escritora do mundo” promete uma “história apaixonante sobre a magia que se esconde nas dobras da vida”, num primeiro prenúncio da pirosice de 284 páginas que me aguarda. A badana, por sua vez, proporciona um sobressalto de orgulho. Afinal, DS “nasceu em Nova Iorque, filha de mãe portuguesa e pai alemão”. Começa agora a viagem ao Planeta Steel.
Capítulo 1 – “Nada de cachorros quentes, hambúrgueres ou sanduíches”
Tudo começa com o Jantar Branco. É “um dos mais acarinhados acontecimentos secretos” de Paris, embora nele participem 15 mil pessoas. O repasto acontece uma vez por ano junto aos principais monumentos da cidade e só é possível comparecer por convite. É obrigatório trajar de branco, “incluindo sapatos”. Nenhuma referência, porém, à roupa interior, depreendendo-se que pode ser azul ou do Rato Mickey, à vontade do freguês. Nem os sacos do lixo escapam a esta alva obsessão: “todos os restos ou detritos devem ser colocados em sacos do lixo brancos e levados, até à última beata”.
Os convidados devem providenciar as suas próprias refeições, cadeiras e mesas com “toalha de linho branco”, “talheres de prata”, “copos de cristal” e “pratos de porcelana”. Qual queque da linha de Cascais, DS mostra nojo por comida de pobre: “nada de cachorros-quentes, hambúrgueres ou sanduíches”. Avisa ainda que as mesas e as cadeiras devem ser “todas do tamanho regulamentar”, nem um centímetro a mais. “Precisamente meia hora depois da meia-noite, a multidão arruma tudo e desaparece, como ratinhos a refugiarem-se no escuro”. No ano seguinte o ritual repete-se. “Ali a magia acontece”.
Esta abertura é um vislumbre do conto de fadas pelo qual DS nos vai transportar nas quase 300 páginas do romance. Há glamour, sofisticação, Dior, Ninna Ricci, aviões privados, iates, limousines, hotéis de luxo e trufas com fartura. Eu, que conduzo um pequeno Citroen e almocei uma salada de atum com grão, fico deslumbrado. Também eu quero ser um Jean Philippe.
Ora bem. O primeiro capítulo serve para apresentar os personagens e Jean Philippe é um deles. Trabalha em “investimentos internacionais numa empresa bem conhecida” e é casado com a americana Valerie, editora-adjunta da Vogue e “principal candidata a editora-chefe dali a dois anos”. É gorda, feia e com uma verruga na cara? Veste Lefties? Alimenta-se de pizas e kebab? Lembrem-se, isto é um livro de DS. A mulher é “naturalmente chique e elegante”. Em resumo, “eram o casal com quem todos queriam conviver”. Filhos: três.
Os italianos Benedetta e Gregorio, outro casal do enredo, “pareciam sempre que tinham acabado de sair das páginas de uma revista de moda”. Trabalham juntos porque ambas as famílias “estavam ligadas à moda havia séculos”. Uma sombra, porém, perpassa: “o fraco de Gregorio por mulheres bonitas e os seus casos ocasionalmente escandalosos que chamavam a atenção da imprensa”. Benedetta, todavia, “decidira há muito tempo ignorar” as escapadinhas do garanhão latino, até porque “ele mostrava-se sempre arrependido”. Mas este príncipe transalpino instituiu um mandamento de grande nobreza: “a sua regra sobre o assunto era nunca dormir com as mulheres dos seus amigos ou dos de Benedetta”. DS não deixa que sujem o nome da gregória figura: “ele era um marido dedicado que adorava a mulher”.
Entra em cena Chantal, empregada do Burguer King a cheirar a batata frita. Brinco, naturalmente. Uma “argumentista de sucesso”, viúva e mãe de três. “Chantal estava sozinha”, choraminga DS – os filhos adultos voaram para longe e homens lá em casa não há. Por enquanto.
A filha da mãe portuguesa introduz na história um “indiano encantador”, Dharam de seu nome. “Um dos homens mais bem-sucedidos da Índia e um génio da tecnologia” é posto na mesa de Chantal. “Ela e Dharam já estavam profundamente embrenhados numa conversa sobre o cinema indiano”. Estamos na página 18 e DS quer fazer-nos crer que está na forja um tórrido romance indo-francês. Mas a história conhecerá uma surpreendente reviravolta.
Ainda no capítulo 1 ficamos a saber que Gregorio teve “um caso com uma supermodelo russa de 23 anos” que o bruto engravidou e logo de gémeos. Em pleno Jantar Branco entra em trabalho de parto e o nosso embaixador das relações italo-russas corre para o hospital. No fim de contas, “era uma pessoa decente”.
Nesta fase ocorre uma intensa actividade ocular. Dharam lança um “olhar meigo” a Benedetta. Sete linhas abaixo trocam-se “olhares tensos” devido à partida de Gregorio.
Dharam, que todos pensavam que ia acasalar com Chantal, vira-se afinal para Benedetta e não perde tempo. “Quando irá visitar-me à Índia?”, pergunta o safadão. E logo depois: “quer dançar?”. A mulher, cujo marido tem a amante a parir gémeos, tem a reacção esperada. “Seguiu-o até à pista de dança”, pois claro. Pouco depois, o opulento indiano pôe-na a emborcar “um champanhe excelente para a animar”. E no fim “oferece-se para levar Benedetta, já que estavam hospedados no mesmo hotel”. Estes e outros lúbricos expedientes acabarão com os pombinhos arrulhando nos lençóis, mas só vários capítulos mais à frente.
Na trama intromete-se agora “um homem bem-parecido” que DS pôe a contracenar com Chantal, depois de esta ter deixado escapar Dharam. Como não podia deixar de ser, “os seus olhares cruzaram-se por um longo momento”.
Capítulo 2 – “Tubos espetados em todo o lado”
Certo é que Dharam “portou-se como um cavalheiro quando acompanhou Benedetta ao quarto” ao passo que Greg agonizava no hospital porque “os bebés provavelmente morreriam ou teriam deficiências”. Por outro lado, o porta-aviões russo transformou-se numa rústica jangada - em trabalho de parto na cama do hospital, está “quase irreconhecível” e “não era a rapariga atrevida e espampanante” com quem ele fora para a cama. Além do mais, “não estava apaixonado por ela” e não deixaria a mulher. Os bebés nascem enfim e lutam pela vida com “tubos espetados em todo o lado”.
Entretanto, Benedetta encontra o magnata de Nova Deli à saída do hotel e fica ensopada pelas lágrimas que “lhe escorriam pelo rosto”, anunciando que está de regresso a Milão. Dharam, persistente, arrisca: “Posso visitá-la para ver como está, apenas como amigo?” E num acto de auto-comiseração, arma comum do arsenal dos guerreiros no engate, desfaz-se em inconfidências piegas. “A minha mulher deixou-me por outro homem há 15 anos”, relata. Arremessa-lhe ainda um “olhar caloroso” e envolve-a num “pequeno abraço”.
Se há apenas umas linhas atrás Gregorio “não estava apaixonado por ela”, pela russa Anya, a chama da paixão conhece uma súbita deflagração. “Pela primeira vez percebeu que estava apaixonado por ela”.
Capítulo 3 – “Chocada, aborrecida e zangada”
O cupido Jean Philippe repreende Chantal porque Dharam “seria um bom partido”. O figurão de Nova Deli, porém, “não tinha feito o seu coração bater mais depressa”. Despachados os assuntos sentimentais, Jean Philippe revela então que recebeu uma proposta de trabalho da China, onde pode ganhar “dinheiro a sério”, ao que a amiga responde que é “um bom salto na carreira”. Saltamos nós umas páginas para saber que Valerie reagiu de três formas diferentes ao anúncio da partida do marido: ficou “chocada, aborrecida e zangada”, por esta ordem.
Entretanto, o destino começa a fazer as suas jogadas, como numa partida de xadrez. No supermercado, Chantal “viu um homem a olhar para ela do outro lado do corredor”. É o galã apolíneo que ela encontrou no fim do capítulo um.
Os olhos continuam numa actividade frenética. O homem usa uns “olhos castanhos intensos” com os quais “olhava directamente para ela” – não é estrábico, portanto. “Havia”, afiança DS solenemente, “algo muito poderoso no seu olhar; parecia que uma corrente eléctrica a atravessava”. O livro começa a ganhar alta voltagem.
Capítulo 4 – “Todas as lâmpadas fundidas”
Em casa de Jean Philippe e Val a tensão, tipo pão-de-forma, é tal que ela “a poderia cortar à faca”. A americana da Vogue evoca mil razões para abortar a ida para Pequim, mostrando-se justamente “preocupada com os cuidados médicos pediátricos”, talvez porque a China ainda não fabrica bons pediatras em quantidade suficiente nas suas inúmeras fábricas.
Cego de avareza, ele insiste em partir porque “podem ganhar-se fortunas” no oriente. Num gesto de benigno desprendimento, a americana contrapõe candidamente, falando no seu luxuoso apartamento de Paris: “Por que razão o dinheiro tem de governar a nossa vida?”
Chegamos, na página 50, a um dos momentos mais delirantes do livro. Chantal visita um filho em Berlim, levando-lhe comida e vestuário, “já que da última vez que o vira toda a roupa que ele possuía tinha buracos”, ignorando que está num livro de DS e não de Charles Dickens.
Além de comes-e-bebes e de meia-dúzia de trapinhos, o que transporta a devota mãe na bagagem? Não tentem adivinhar. Preparados? Uma caixa de ferramentas, “para fazer pequenas reparações”. Esta “mãe para todo o serviço” em modo Bob o Construtor mudou “todas as lâmpadas fundidas no apartamento”, reparou “duas prateleiras no escritório” e substituiu um “candeeiro partido”. Fundido começo a estar eu e ainda não cheguei a meio do livro.
De volta a Paris com uma mala que “pesava uma tonelada devido à caixa de ferramentas”, cortesia do filho inútil, Chantal vê-se novamente presa nas garras do destino. Em apenas 63 páginas, dois desconhecidos chocam casualmente por três vezes em Paris, como se Paris fosse uma aldeia com cinco ruas – primeiro no Jantar Branco, depois no supermercado, agora no aeroporto. Ele chama-se Xavier, é advogado e está com pressa. “Janta comigo esta noite?”, pergunta, pondo Chantal, mais velha mas mais ingénua, a produzir pensamentos inocentes: “Era jovem e obviamente não estava a tentar seduzi-la, apenas a ser prestável”. Quatro páginas à frente, no entanto, Chantal é assaltada pela incerteza: “não percebeu se estava apenas a ser simpático ou se se sentia interessado por ela como mulher”. Ele, por sua vez, já não tem dúvidas: “havia ali mais do que amizade”. E, como não podia deixar de ser, há correntes eléctricas a percorrer os corpos e “olhos muito expressivos” fitando-se mutuamente.