Naquela tarde do início do século XVII, o típico calor estival abatia-se sobre Roma. Mas nada demoveu aqueles que tiveram a oportunidade de ver pela primeira vez a mais recente pintura de Michelangelo Merisi, conhecido como Il Caravaggio (1571-1610).
Desde os primeiros instantes, a pintura Madonna dei Pellegrini ficou envolta em escândalo. Como escreve António Mega Ferreira, o “pormenor obsceno põe fim a cem anos de representação idealizada do Homem”. Mas antes de revelarmos o motivo dessa reação à pintura de Caravaggio, façamos o exercício de no presente observar com atenção as imagens que nos enchem os ecrãs.
Sem demonizar a tecnologia e sabendo que há mensagens positivas e otimistas, temos de reconhecer que, do mundo do estrelato de Hollywood até aos influenciadores lusitanos, existe uma tendência — acelerada pelas ditas redes sociais — para a sacralização de muitos que projetam uma imagem idealizada de perfeição, com padrões de beleza estereotipados.
Paradoxalmente, a mesma tribo que coloca num pedestal sagrado uma figura “pública” valorizando todas as suas partilhas ou opiniões pode arrasar, num segundo, as suas obras (do cinema à literatura) se é descoberta uma ou mais sombras, na sua biografia.
Como afirmou assertivamente Henrique Raposo no Expresso, tal tem como consequência o “desprezo pela transcendência, pelo ato de libertação que é imaginarmos vidas além da nossa”.
Regressemos à Cidade Eterna: afinal, o que contém o quadro do mestre barroco? Trata-se de uma esplêndida pintura em que a Virgem recebe, com Jesus ao colo, um peregrino. E este tem os pés descalços e sujos. Há, como escreve Mega Ferreira em “Roma”, uma deliberada vontade de reforçar o humano e o quotidiano, o que foi, à época, inovador e arriscado.
Apesar das críticas, os Agostinhos sempre defenderam a obra e o quadro encontra-se atualmente na Capela Cavalleti da Igreja de Sant´Agostino, perto da Piazza Navona.
Portanto, em vez de seguirmos cegamente os deuses do nosso século talvez faça mais sentido aceitarmos que todos partilhamos uma complexidade que inclui momentos solares e devaneios que nos afastam do divino, mas que também nos tornam, simplesmente, humanos. É no quotidiano entre a luz e a sombra que, como pintou Caravaggio, se encontra a beleza.