Tenho uma pedra no sapato esquerdo. Devia ter sacudido as palmilhas antes de me calçar esta manhã, mas não o fiz e, agora, enquanto caminho, sinto uma ligeira dor a cada passo que dou. Manco um pouco enquanto o Sol, que já espreita entre os telhados das casas que se amontoam na linha do horizonte, me aconselha a parar para resolver o problema.
É uma manhã de agosto numa cidade inglesa qualquer onde por acaso eu vivo, onde por acaso eu morro todos os dias um bocadinho e onde às vezes caminho sem direção para combater a solidão. Os músculos do meu corpo têm ligeiras contrações por causa do frio e o fumo que se forma à frente da minha boca quando respiro confunde-se com alguns cigarros pensativos que passam por mim.
Sempre achei estranho que possa morar tanta solidão numa cidade. Se eu contar o número de pessoas que caminham sozinhas e o número de pessoas que vão acompanhadas neste momento, as primeiras ganham por larga maioria. Eu sou apenas mais um solitário, claro, que em vez de fumar respira.
Sento-me num banco de rua e desaperto os atacadores do sapato que me provoca dor. A minha meia tem um pequeno buraco no dedo grande. Tento mexer todos os dedos do pé como se com ele estivesse a tocar piano para que a meia chegue um pouco à frente. Ao mesmo tempo tiro a palmilha e viro o sapato ao contrário até a pedrinha cair.
Nem reparei no homem que se vinha aproximando de mim e agora se senta ao meu lado, atirando o seu corpo para o espaço ainda livre como se fosse um soldado ferido em guerra. Mas ele não é um soldado, é apenas um homem bêbado pela manhã que, muito provavelmente, passou a noite a beber à porta duma loja de conveniência, a pedir bebidas através duma pequena janela que em troca engolia o seu dinheiro. Tenta falar comigo, mas os seus lábios tropeçam-lhe nas palavras.
Cada vez tenho menos certezas sobre esta vida, mas há uma que mantenho como certa. Não se deve ignorar um homem neste estado. Não sei o que nos trouxe aqui, os dois ao mesmo tempo a este banco maltratado duma rua de Stoke On Trent, mas aproveito o momento para ir concordando com tudo o que ele me diz e eu não percebo. Hum, hum...
E enquanto ele desabafa e justifica a mim e ao mundo a sua frágil situação, o meu pensamento recua algumas décadas e à cidade de Aveiro, onde também estou sentado num banco público e um homem bêbado me estende a mão. Atrás dele, uma mulher com olhos irrequietos e a pele da cara cheia de vulcões abertos mantêm-se em silêncio. Dou-lhe algumas moedas e ele agradece tirando da cabeça um chapéu invisível. Antes de se afastar deixa algumas palavras:
- O Lino de Aveiro não faz mal a ninguém. Só faz mal a ele mesmo.
Conheci pessoalmente o Lino de Aveiro muitos anos mais tarde, já ele conseguira deixar o estado de embriaguez permanente com que me habituei a vê-lo pelas ruas da cidade na minha juventude. Vi então um homem simples, com um coração do tamanho do mundo, que me ensinou que a força de vontade é quase tudo nesta vida.
As cidades são todas assim, cruéis. Ignoram aqueles que mais precisam delas e passam a tratá-los como uma pedra no sapato. O Lino de Aveiro já partiu do mundo dos vivos, mas deixou-me essa lição quando ele próprio enfrentou essa cidade e lhe ganhou o confronto. Acho que tudo o que ele queria era ter sido ouvido mais cedo.
E agora este homem ao meu lado levanta-se em esforço. Eu já me calcei e pergunto-lhe se ele precisa de algum tipo de ajuda, ao que ele me responde fazendo um sinal de "fixe" com a mão. Agradece-me a conversa e afasta-se devagar, um pouco mais sóbrio do que quando se sentou.
Desejo-lhe sorte, mas só em pensamento.