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José Oliveira, “o pintor da Ria”, vai beber inspiração à comunidade

Região

“O progresso técnico, económico e social levará a melhor sobre os moliceiros tal como já condenou os moinhos que giram ao sabor dos rios ou dos ventos. A transição para a era europeia verá o naufrágio destes magníficos pequenos barcos” – foi assim que Claude Rivals, professor de sociologia e antropologia na universidade de Toulouse, em França, vaticinou o desaparecimento do barco moliceiro, em 1988, no livro «Pinturas dos moliceiros de Aveiro – cultura e arte popular». No entanto, como constata o artista murtoseiro José Oliveira, que terá colaborado com Rivals na elaboração daquela obra, “o professor estava errado”.

A atividade profissional para a qual o barco moliceiro foi criado, sim, extinguiu-se, depois de vários anos em decadência. Mas a Ria por cá ficou e, com ela, a sua mais icónica embarcação. Hoje, além de servir os visitantes mais apressados em passeios fugazes pelos canais aveirenses, o moliceiro vive da vontade de uma mão cheia de “loucos” que, teimosamente, continuam a navegar em Ria aberta, de pano enfunado, num espetáculo de cor, perícia e elegância que anima as águas, os céus e as gentes. Para estes aficionados, o moliceiro “é como um brinquedo caríssimo”. Afinal, “exige muitas reparações” e “só faz três ou quatro regatas por ano das quais não se tira lucro nenhum”. É por isso que, para José, “quem tem barcos moliceiros, tem-nos por saudosismo e paixão”. “Há quem goste de ter bons carros ou motas de alta cilindrada. Eles gostam de ter o seu barco moliceiro”, enquadra o artista que, nos últimos anos, tem dedicado parte da sua carreira à decoração destas embarcações tradicionais.

José Oliveira nasceu na Murtosa, “pátria do moliceiro”, há 54 anos. Aos 17 anos, começa a trabalhar nos Estaleiros Navais de São Jacinto, mais precisamente, na Sala de Risco – “o coração dos estaleiros” – onde se planificava e traçava os navios à escala natural. Um ofício de minúcia e responsabilidade, mas que José sempre gostou bastante. A genialidade daqueles profissionais e o rigor e exigência que imprimiam ao seu trabalho serviram-lhe de escola e exemplo. Foi, por isso mesmo, com mágoa que, em meados dos anos de 1990, com a crise que se instalara na construção naval, José decide abandonar a empresa. “Nesse dia, à saída do estaleiro, chorei”, admite, não escondendo a saudade que aqueles anos lhe deixaram. “Agora não gosto muito de ir a São Jacinto. Ver os estaleiros abandonados e em ruínas mexe comigo. Entrei lá uma vez para ver como é que aquilo estava e arrependi-me”. 

 

 

Atualmente, José Oliveira dedica-se exclusivamente às artes plásticas. Tem um atelier, em Estarreja, onde dá formação, e também dá aulas de pintura, na Murtosa, a crianças dos 3.º e 4.º anos. Gosta de pintar a óleo sobre tela e, quando se lhe pergunta o seu objeto artístico de eleição, a resposta é tão rápida quanto previsível: “a Ria e as terras alagadiças”. Trabalha, igualmente, em escultura e azulejaria, e ainda colabora com as escolas de samba e os grupos de folia do Carnaval de Estarreja na construção dos seus carros alegóricos. Ainda assim, é pela decoração dos barcos moliceiros que José é mais conhecido. Chamam-lhe o “pintor da Ria”.

Até ao final da década de 1980, era Jacinto Lavadeiro quem pintava os moliceiros que navegavam pela Ria. No entanto, com o seu falecimento prematuro, os proprietários e construtores foram obrigados a procurar quem desse continuidade àquela arte. Sabendo-o habituado às lides da laguna e conhecendo alguns dos trabalhos de natureza artística que realizara para os estaleiros, alguém terá sugerido o nome de José. “A princípio, disse-lhes que precisava de me inteirar da situação. Não queria desvirtuar a identidade dos barcos. Para garantir que não fazia asneiras, pedi-lhes para me levarem a casa da viúva, que me mostrou os desenhos do falecido Jacinto. Logo ali, senti que estava a abraçar a responsabilidade de dar continuidade a uma tradição”. 

Trinta e quatro anos depois, José Oliveira é o autor dos painéis coloridos que, à proa e à popa, decoram praticamente todos os moliceiros da Ria de Aveiro. Fruto do seu traço, humor e criatividade terão nascido, “seguramente, mais de um milhar de painéis”, mas José  ainda se lembra dos primeiros: “na proa, a estibordo, pintei D. Nuno Álvares Pereira; na popa, uma peixeira com o barco de xávega; no painel de bombordo, à proa, pintei o alferes Duarte de Almeida, herói da Batalha de Toro, que ficou para história com o cognome «O Decepado»; finalmente, no outro painel da popa, pintei Cristo com a cruz a caminho do calvário, um painel que aparece muitas vezes em imagens, que me ficou, para sempre, na memória e que recordo de forma especial. Pintei esse painel mais do que uma vez naquele barco, o Manel adorava-o” – Manuel Rito era o proprietário do «João Manuel», o primeiro moliceiro que José pintou, “uma embarcação magnífica”, que “chegou a ganhar várias regatas”.

Se a técnica artística e o conhecimento da tradição são essenciais para quem se entrega à missão de decorar os painéis dos moliceiros, há outro fator preponderante: o bom humor. “O segredo é tentar pôr a malícia na cabeça de quem está a ver”, desvenda José, reconhecendo que “há pessoas que reagem menos bem”, mas “a maioria ri-se”. Por altura das primeiras vagas do processo de vacinação contra a Covid-19, José decorou um painel de proa com a figura de “burro muito sorridente” e a legenda “Não quiseste ser vacinado? Somos dois!”. A pintura valeu-lhe uma reprimenda por parte de “uma senhora muito chateada que dizia ter todo o direito a não querer ser vacinada”. Noutra ocasião, em Aveiro, José é abordado por um homem sisudo e austero que lhe pergunta se não tem vergonha do que está a fazer. “Nem a igreja escapa?”, terá acrescentado, com voz indignada, antes de se afastar, perante o ar surpreso de José. É preciso dizer que, no painel que o pintor estava a retocar, figurava uma bela rapariga e um padre, caminhando em sentidos opostos. Era um típico dia de vento na cidade e uma inesperada rajada levantara a saia à rapariga. Na legenda, lia-se “Á ventinho abençoado!”. “Vim a saber, mais tarde, que o homem era padre”, explica José. 

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Mais recentemente, foi um grupo feminista sediado em Aveiro a demonstrar “incómodo” pela forma como a figura feminina é representada nos painéis. No entender deste grupo, vários painéis retratam “mulheres a serem objetificadas, ridicularizadas, sexualizadas e discriminadas”, uma crítica que espanta e inquieta José Oliveira. “Os painéis não ofendem ninguém, não magoam ninguém”, afirma.  

Uma coisa é certa, avança o artista: os painéis brejeiros são, de todos, os mais requisitados pelos donos dos barcos. “A partir do momento em que se aperceberam que os painéis mais brincalhões eram os mais votados [nos concursos], não me pedem outra coisa. Ainda há um ou outro que faz questão de ter o santo da sua devoção impresso no barco e, eu próprio, principalmente quando pinto um barco marítimo-turístico, tenho o cuidado de incluir um painel histórico pelo valor identitário que representam”. 

Depois de mais mil painéis, onde é que José ainda encontra inspiração? Essencialmente, “no contacto com a comunidade”, revela. “Gosto de pintar à beira-Ria porque os pescadores que estão à espera da maré vêm ver-me pintar. Tenho o hábito de deixar sempre a legenda para o fim, para lhes despertar a curiosidade. Quantas vezes eu tinha uma legenda pensada e eles, ao tentarem adivinhar, criam legendas melhores. Aproveito-as, claro”. 

Quanto aos proprietários dos barcos, a maior parte diz-lhe para pintar “à sua maneira”, mas há um ou outro que gosta de dar a sua achega, de propor desenhos ou legendas, sugestões que José acolhe de boa vontade. “Só quando me pedem daqueles painéis que teriam de levar uma bolinha vermelha é que eu digo não”, diz o artista. 

Neste momento, José Oliveira é o único a pintar barcos moliceiros segundo os cânones da tradição popular. Ainda assim, não teme que a arte possa estar em risco. “Tal como eu apareci, quando for necessário, aparecerá alguém interessado nesta arte e que esteja disposto a respeitar a tradição destes barcos”, confia José. “E até pode acontecer como no «Exterminador Implacável» e aparecer um artista mais evoluído”, brinca.

 

* Entrevista publicada na Revista Comemorativa do 5º Aniversário da Aveiro Mag

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