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Viagens na Nossa Terra: Voltar aos sítios onde fomos felizes

Roteiro

Uma das memórias vivas que guardo da infância é o Citroen GS do meu avô paterno. Tinha uma característica que o tornava especial e que exercia grande fascínio em mim. Consistia na suspensão hidropneumática que fazia com que a sua parte traseira – do carro, não do meu avô - se elevasse lentamente até à posição correta, antes de ser posto em movimento.

Aquele GS cinzento, que aos olhos de uma criança fazia lembrar um objecto futurista saído de um filme de ficção científica, era um dos carros em que a família se fazia transportar nas excursões ao Rio Alfusqueiro e ao Jacinto, para os lados de Águeda. No rio passávamos horas a tomar banho, a lançar os seixos espalmados à água fazendo-os dar sucessivos ricochetes na superfície ou a observar os alfaiates, uns bichos estranhos que pareciam um cruzamento entre um inseto e uma aranha. No Jacinto comíamos o bacalhau com cebola e batatas fritas que eu não trocaria por nenhum prato de um chef com três estrelas Michelin.

A humanidade sempre se debateu com grandes questões difíceis de decifrar. Quem somos, de onde vimos e para onde vamos? Deus existe? O Elvis morreu mesmo? Há um monstro no Loch Ness? Devemos voltar aos sítios onde fomos felizes?

À última pergunta, que é a que aqui nos interessa, cada um responde à sua maneira. Passados estes anos todos, nem o Rio Alfusqueiro secou nem o Jacinto fechou. Permanecem no sítio de sempre. Mas devo lá voltar? Voltando macularei as lembranças felizes?

Ao restaurante, na aldeia de Arrancada do Vouga, poucas vezes regressei. Sempre que o fiz, porém, o bacalhau e o senhor Jacinto pareceram os mesmos de sempre. Mas ao rio, com a sua praia fluvial encaixada num bonito vale verdejante, volto todos os anos, a cada Verão. Pouco mudou desde as expedições familiares da minha infância com pais, avós, primos e tios. O leito do rio continua a ser como uma piscina para crianças, deixando-nos submersos só até à cintura. A água continua límpida e imaculada, permitindo contemplar com toda a nitidez as pedras achatadas que repousam no fundo. A pequena represa, que não é mais do que um modesto friso de calhaus um pouco maiores, continua a servir de fronteira ao resto do rio, que estende o seu curso para lá da curva a seguir à ponte. As árvores frondosas que orlam o lençol de água continuam a dar ao local a aparência de bosque encantado. A bonita ponte de granito, com o seu arco sobre o leito do rio, continua a anunciar o fim da viagem e a ser a porta de entrada para aquele mundo maravilhoso. Tudo isso está gravado na minha memória e o incontornável peso da realidade encaixa na perfeição.

A única diferença substancial é que agora o espaço tem sanitários e um pequeno bar com meia-dúzia de cadeiras instaladas numa varanda com vista para o rio. No resto, é como se voltasse a ter dez anos outra vez, a cada regresso.

Escolho um dia ameno para a primeira viagem deste ano. De Aveiro rumo a Águeda e depois de ultrapassada a sua zona industrial encaminho-me para Arrancada do Vouga. Obras em curso na estrada obrigam a um desvio e passo pela Quinta da Aguieira, uma propriedade do século XVIII onde se produz vinho, e pelo Parque da Boiça, um espaço de lazer inaugurado há pouco tempo.

Antes de conseguir retomar o caminho original, o desvio leva-me a uma estrada com um nome singular: Rua Padres e Professores. Soa a uma combinação aleatória de profissões e dou por mim a olhar para as placas à espera de encontrar a Rua Padeiros e Arquitectos ou a Rua Médicos e Costureiras.

Uma vez em Arrancada do Vouga, encontro algumas bonitas casas abandonadas, um triste flagelo do país inteiro, e passo pelo Jacinto, na rua principal. Está fechado, por ser segunda-feira, mas desperta as primeiras reminiscências.

Deslizo calmamente – mais calmamente do que o desejado porque a rua está em obras e abundam as crateras – até A-dos-Ferreiros, onde depois de abandonar a N333 inicio a etapa final até ao rio. Esta é já a zona serrana de Águeda e tenho a bonita estrada de montanha praticamente por minha conta. Ao fim de poucos minutos a ziguezaguear cruzo a ponte de granito e alcanço a praia fluvial, quase deserta àquela hora matinal.

Depois de me banhar no rio, decido prosseguir até Macieira de Alcôba, uma relíquia do país serrano e rural. Para lá chegar serpenteio por uma bela estrada que proporciona vistas privilegiadas da Serra do Caramulo, com as suas encostas e vales até onde a vista alcança. Numa rudimentar paragem de autocarros na margem da estrada alguém escreveu a letras pretas sobre o metal verde ondulado “aqui fumasse muita droga”, provando que o consumo de certas substâncias inibe a capacidade de escrever bem. Mesmo por cima a Comunidade Local dos Baldios da Freguesia do Préstimo afixou uma convocatória para uma tomada de posse e um cartaz na mesma chapa metálica do abrigo anuncia a Festa de Serra de Cima, com a promessa de um arraial ao som dos Menta Freska.

Macieira de Alcôba intitula-se Aldeia Pedagógica do Milho Antigo, com um centro interpretativo, e é uma povoação muito bonita e muito bem conservada. Como tantas outras, luta contra o despovoamento – não se vê ninguém nas ruas. Do seu pequeno centro, onde está exposta uma reprodução do foral de 1298, sigo em direcção à antiga escola primária, passando por uma rua com um nome encantador: Rua da Professora. A construção da escola, informa uma placa à entrada, deve-se ao Plano dos Centenários lançado pelo regime português em 1940. Há muito, porém, que deixou de receber crianças e é agora um restaurante que serve gastronomia tradicional. O edifício está muito bem cuidado e no interior a decoração confere um ar rústico ao espaço. Num pequeno quadro de ardósia pousado num balcão está escrito a giz “aqui não temos wi-fi, falem”. Aproveito para um café na esplanada, nas traseiras, escutando o som do silêncio.

Deixamos A Escola, o nome do restaurante, e vamos explorar a Escadaria do Outeiro da Vila, anunciada num cartaz no início do percurso. A placa indica um trajeto de 115 metros, ligando a zona baixa de Macieira de Alcôba à Capela de Nossa Senhora de Fátima, erguida numa pequena elevação de onde se tem uma bonita vista sobre o casario da aldeia, rodeado de verde por todos os lados.

A construção de estruturas como passadiços e escadarias pode ser benigna se empreendida com critério, cuidado, inteligência e bom-senso. Parece haver agora, todavia, uma compulsão que muitas vezes raia o absurdo. O alcance da Escadaria do Outeiro da Vila escapa-me. A estrutura em degraus vai ascendendo aos s’s pela encosta do pequeno monte até alcançar o seu topo. Não exige mais do que dois minutos de tempo e de esforço, o mesmo que se despende ao chegar à capela pelo caminho que já existia antes, uma curta espiral que ladeia a elevação à medida que sobe. Da próxima vez que visitar Macieira de Alcôba talvez encontre umas escadas rolantes de 20 metros entre o último degrau da escadaria e o bonito templo a Nossa Senhora de Fátima.

Desço das alturas e regresso às ruas baixas da aldeia, por onde passa o percurso pedestre Terras de Granito, um caminho circular de oito quilómetros que vale a pena percorrer, e onde reparo num Alojamento Local instalado numa bela casa de pedra.

Regresso ao carro sem ter visto uma única pessoa. Sem gente, estas aldeias remotas, maravilhosas e cheias de autenticidade vão definhando. Abundam os casos pelo país fora. Macieira de Alcôba vai resistindo como pode.

Escrevi remota – mas é remota a palavra certa? Em trinta minutos estou em Águeda e em menos de uma hora estou em Aveiro, em casa. Deixei para trás o meu passado feliz, com a certeza de que ele está no sítio de onde nunca saiu.

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