Ricardo Regalado cresceu na Mamarrosa (Oliveira do Bairro), uma aldeia – mais tarde, vila – rural, com pouco mais do que um milhar de habitantes. Quando era pequeno, a Mamarrosa fervilhava de atividade artística e cultural. “Pertenci a um grupo cultural orientado pela professora Rosinda de Oliveira, onde fazíamos contradanças e teatro satírico e, por influência da minha mãe, também fiz parte de um grupo de poesia desde muito novo”, enquadra o jovem, em entrevista à Aveiro Mag. “[Nesse tempo], as pessoas juntavam-se naturalmente para dançar, para fazer teatro ou ler poesia”, recorda, lamentando que “a maior parte dessas atividades tenham deixado de existir”. “As expressões culturais e artísticas que, de alguma maneira, estavam institucionalizadas resistiram – os ranchos folclóricos e a banda filarmónica, por exemplo –, mas todas as iniciativas espontâneas acabaram por morrer”, descreve Ricardo, lembrando um tempo em que a “vivência cultural era muito menos institucionalizada”, bem diferente da lógica atual em que a cultura está muito associada a salas de espetáculo e às autarquias que lhes definem a programação. “Dantes, a cultura era uma extensão natural da vida em aldeia”, esclarece o dirigente associativo que, aos 28 anos, assume como sua a missão de voltar a trazer à sua comunidade a vivência das tradições culturais, os hábitos de encontro e os momentos de discussão sobre o território.
Quando chegou a hora de decidir por que área de estudos enveredar no ensino superior, Ricardo Regalado escolheu o Teatro, sendo que o Colégio Frei Gil, onde concluiu o secundário, foi “muito importante nessa tomada de decisão”. “O colégio apoiava os sonhos e ambições dos alunos, fazia-nos acreditar que era possível”. A verdade é que, na altura, com o país a tentar sair da crise financeira que o afundara, “qualquer caminho profissional parecia arriscado” e Ricardo decide arriscar. Hoje, ao olhar para trás, percebe que, de certa maneira, talvez não tenha feito mais do que cumprir o destino que lhe estava traçado: “A minha família já tinha uma ligação ao Teatro. No início do século passado, o meu bisavô – Júlio Dias Gapo – que, como a maior parte das pessoas da aldeia, era agricultor, já escrevia peças de teatro e encenava-as aqui na Mamarrosa”, expõe o jovem, confessando sentir que, apesar de não o ter percebido na altura, esta forma de arte e expressão já fazia parte do seu ADN.
Ricardo licenciou-se em Teatro, no Porto, e veio a concluir o mestrado em Estudos Artísticos, mais tarde, na cidade de Coimbra. Ao longo do seu percurso académico, teve a oportunidade de passar por “salas como o Teatro Nacional de São João, o Rivoli ou o Teatro Académico Gil Vicente” e de trabalhar de perto com as equipas de “grandes companhias [de teatro], como a Seiva Trupe, os Artistas Unidos, a oficina Teatrão ou a Escola da Noite”.
Ora, com os conhecimentos e a experiência que adquiriu nestes anos formativos, podia ter escolhido desenvolver a sua atividade numa grande cidade, eventualmente até fora do país, lugares onde, apesar da “competição desenfreada” e a lógica de “consumo efervescente”, encontraria, certamente, hábitos de participação instituídos. Porém, escolheu “regressar a casa”, ao “lugar onde tudo começou”, e trabalhar para a comunidade que o viu crescer. “Senti que era o lugar onde fazia mais falta”, fundamenta. “Quis retribuir à minha aldeia as oportunidades e experiências que ela me ofereceu”, atesta, servindo-se do provérbio africano que reza ser “preciso uma aldeia inteira para educar uma criança” para justificar este desígnio.
A Promob e as suas batalhas
Ricardo Regalado ainda estava a concluir a licenciatura quando o Governo de António Costa entendeu pôr fim aos contratos de associação, pondo em risco a continuidade de estabelecimentos de ensino um pouco por todo o país, entre eles, o Colégio Frei Gil, em Bustos. Sem viabilidade financeira para existir de outra forma, a escola viu-se obrigada a recorrer à cobrança de uma propina às famílias dos alunos, muitas deles, sem capacidade para assegurar esse pagamento. É neste contexto que, a 5 agosto de 2016, é constituída a Promob – Associação de Promoção e Mobilização da Comunidade –, um movimento cívico contra o encerramento do colégio, que logo se predispôs a angariar fundos no sentido de apoiar as famílias mais carenciadas. “Começo a participar nas ações que a associação promovia logo desde esse instante. Afinal, aquela era uma causa que me dizia muito enquanto antigo aluno”, conta. Em 2017, Ricardo reúne um conjunto de pessoas e constrói a “Carta a Nunes Alferes ou Para Ser Lida Amanhã”, uma peça de teatro sobre a história do colégio e a sua importância para a comunidade. “Foi das primeiras coisas que eu fiz com a Promob”.
No final, “a luta pelo colégio perdeu-se”, assente. “Hoje até já há uma escola pública nas instalações onde funcionou o colégio, mas a comunidade sente que perdeu aquela batalha”. Por momentos, o futuro da Promob pareceu incerto, mas logo a associação se reinventou, evoluindo para um projeto de promoção da cidadania ativa e do envolvimento com a comunidade. O foco da sua ação passou para uma nova causa: o restauro do Torreão do Palacete de Bustos, uma peça centenária de inestimável valor patrimonial, símbolo identitário daquela freguesia e, por conseguinte, daquela comunidade, que se encontrava em elevado estado de degradação.
Também esta luta não teve o final sonhado. A associação que era proprietária do imóvel tê-lo-á doado à câmara municipal de Oliveira do Bairro, transferindo para a autarquia a responsabilidade da sua preservação e esvaziando o sentido da Promob investir na sua recuperação. À segunda batalha perdida, é possível que tenha havido um novo momento de desalento e que muitos tenham questionado a sobrevivência da associação. Mas já nada poderia parar o movimento que se criara.
A Promob resiste e decide avançar para a aquisição de uma sede própria. Com a verba angariada, compra um outro edifício histórico no centro de Bustos que, também ele, faz parte da memória coletiva da comunidade – é “um antigo armazém de móveis ao qual, em tempos, todos recorriam” – e nele começa a exercer a sua atividade. “Temos vindo a habitar a nossa sede aos poucos, aproveitando para organizar exposições, concertos e palestras”, informa o agora presidente da direção.