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O 25 de Abril nas respostas de um pai às perguntas de um filho

Sociedade

Jorge Cunha nasceu em Aguiar, na freguesia de São Cosme, em Gondomar, mas viveu a vida toda em Aveiro. Foi, como militar, um dos participantes anónimos do 25 de Abril. Nessa madrugada partiu para Lisboa a partir de Avelãs do Caminho, onde a sua companhia estava em exercícios.

A bordo desta trôpega geringonça que é a memória, percorremos juntos, lentamente, o caminho de uma vida, com todas as suas curvas e contra-curvas, subidas e descidas.

Ao lado, o janelão do escritório abre para o mundo de hoje. Do outro lado do vidro vêem-se um relvado e uma pequena ribeira, carros e pessoas a passar, o sol oferecendo luz e calor ao mundo. “Só quem viveu os tempos anteriores ao 25 de Abril é que pode avaliar como era a vida antes”, diz este homem de 79 anos. Este homem é o meu pai. Deve um jornalista entrevistar o pai? Sentados um em frente ao outro, quebrámos a regra. Não foi isso também o 25 de Abril?

Começando pelo princípio: nasceste em Gondomar…

Nasci em São Cosme, Gondomar, em 1944. Os meus pais são de São Cosme mas na altura já viviam aqui em Aveiro.

Quando nasceste os avós já viviam cá?

Já.

Não sabia…

Tinha um irmão mais velho, que tinha o teu nome…

Ou eu é que tenho o nome dele…

Pois… O meu pai tinha arranjado um emprego aqui em Aveiro, nuns armazéns de azeite, Duarte Santos e Correia, em Esgueira. Entretanto já tinham casado e vieram viver para Esgueira, numa casa que ainda existe, quase em frente à agência funerária Capela. Mas como não tinham cá família absolutamente nenhuma, todos nós, os três irmãos, fomos nascer a São Cosme.

Nasceste em casa de alguém da família?

Nunca perguntei à minha mãe, mas diria que sim. Possivelmente em casa dos meus avós maternos. Naquela altura os partos geralmente eram em casa, com a ajuda de uma parteira.

O que é que o avô e a avó faziam antes de virem para Aveiro?

A minha mãe tinha tirado o curso do Magistério Primário, tal como a mãe dela, a minha avó Berta.

Também não sabia disso…

Mas nunca exerceu. Porque depois casaram, vieram para Aveiro, vieram os filhos. Tornou-se doméstica, a cuidar da casa e dos filhos. Era muito habitual. Poucas mulheres trabalhavam fora de casa. Mas a minha avó foi professora, na escola primária em São Cosme.

E o avô?

O meu pai fez uns estudozitos no equivalente a uma escola industrial e comercial. Aprendeu umas coisas de contabilidade. E depois, por intermédio de um fulano qualquer dos lados de Gaia, que era também sócio do armazém de azeite em Esgueira, conseguiu colocação como guarda-livros nessa firma. Vieram para cá e ficaram cá a viver.

A ideia que tenho é que o avô viajava muito em trabalho…

Bastantes anos mais tarde tornou-se sócio da firma – os outros dois sócios deram-lhe sociedade, ficou com uma quota pequena. E nessa altura – já eu era crescidito – fazia bastantes viagens de carro para fazer visitas a clientes, vendas e receber dinheiro. Ainda me lembro do meu pai ir a casa dos clientes e eles pagarem em dinheiro, e eu às vezes ajudava-o a contar as notas. Ainda cobria uma área bastante grande. Lembro-me de ir com ele uma série de vezes para Adémia, Cantanhede… A volta maior que ele fazia, aos sábados, numa carrinha 2 Cavalos, era para a Beira Alta - chegava a ir até Trancoso, Penedono, Viseu…

E as estradas não eram nada do que são hoje…

Pois não. Albergaria, Vouzela, Viseu, Castelo de Paiva e por aí fora. Era o dia inteiro.

Então a tua infância e juventude foi passada toda em Aveiro. Pensei que ainda tivesses vivido em Gondomar…

Não. Íamos lá às vezes no verão, quando éramos mais miúdos, passar uma semana ou duas a casa dos meus avós maternos. Ou às vezes aos fins-de-semana, de comboio ou de carro, quando o meu pai comprou a velha arrastadeira.

Fizeste a escola em Esgueira?

Fiz a escola primária em Esgueira, onde é agora a Junta de Freguesia.

E lembras-te da professora?

Lembro-me de duas. Uma era a dona Maria Isabel Ramos, quer era casada com o Henrique Ramos, da casa de fotografias. Que era mazinha.

[Henrique Ramos foi um conhecido fotógrafo da cidade de Aveiro]

Ainda levaste umas reguadas?

Uma vez mandou-me um bofetão, fiquei com a orelha a zunir. Depois lembro-me da dona Maria Luísa, o marido dela era o Guerra de Abreu, que desenhava muito bem e fazia caricaturas para o Litoral. Essa senhora era muito boazinha.

[Alfredo Guerra de Abreu foi um artista aveirense. O seu nome figura na toponímia da cidade]

E depois da escola primária?

Da minha turma da quarta classe eu e um outro rapaz de Esgueira fomos os únicos que continuámos os estudos. Fomos para o Liceu Nacional de Aveiro, onde é agora a Escola José Estêvão. Ainda funcionava o primitivo liceu, a atual Escola Homem Cristo, onde também andei. Terminei o liceu em 1962, e nesse ano fui para a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde andei seis anos, no curso de Filologia Românica. Acabei por andar mais um ano porque no último ano não consegui fazer uma cadeira – o professor era o Pimpão, que era a fera da faculdade.

E porquê Filologia Românica?

Tinha mais inclinação para as letras, sempre tive. No liceu guardo uma muito grata recordação do reitor dessa altura, o dr. José Pereira Tavares, que era uma excelente pessoa, bom professor, estudioso. Nunca tive grande inclinação para a matemática. E tive um professor que não tinha paciência e insultava os alunos. Lembro-me de uma vez em que me mandou ir ao quadro, que ficava num plano mais elevado, em cima do estrado, assim como a secretária do professor…

Numa posição de autoridade…

Exato, mais acima… Eu não consegui fazer o exercício e ele disse uma coisa que nunca mais esqueci, tinha eu os meus 11 anitos: “olha, meu menino, vai cavar batatas para a Gafanha”. E mandou-me sentar. E marcou-me. Uma pessoa sente-se humilhada.

[José Pereira Tavares nasceu no Pinheiro da Bemposta em 1887. Foi reitor do Liceu de Aveiro e autor de várias obras de carácter didático. Lançou, com Álvaro Sampaio, a revista Labor, voltada para os problemas do ensino liceal. Morreu em 1983, aos 96 anos]

Ires para a universidade sempre foi um objetivo teu?

Sim, já tinha ideia de seguir para professor. Não é que ganhassem muito, mas naquele tempo a carreira docente era relativamente conceituada. Mas não foi por isso. Meteu-se-me na cabeça que havia de gostar de ser professor. E gostei do curso.

Acabaste o curso em que ano?

Em 1969. Ainda participei nas lutas académicas. Foram lutas muito acesas, esteve por lá a polícia de choque… Quando acabei, pus-me à procura de escola. Tinha as habilitações literárias, mas não tinha formação pedagógica. Era preciso fazer um estágio para se ingressar nos quadros. Estive dois anos na Escola Fernando Caldeira, em Águeda, a dar Português e Francês.

Como ingressaste no serviço militar?

Já há uma série de anos que tinha ido à inspeção, aqui em Aveiro, num edifício onde desemboca a Rua Von Haff. Eu e outros pusemo-nos em pelota, para o médico nos ver… Mas como andava a estudar, era permitido pedir adiamento da incorporação. Fui sempre adiando até acabar o curso e ainda dei os dois anos de aulas em Águeda. Só depois é que fui para a tropa, em Outubro de 1971.

Onde?

Em Mafra. Foi para lá que me mandaram ir. Estive lá seis meses. Os três primeiros meses era quando se fazia a recruta e os três seguintes eram para a especialidade. A mim calhou-me a infantaria. Lembro-me muito bem que os primeiros três meses, no fim do Outono, princípio do inverno, foram com um tempo radioso, sempre com sol. Os três meses de especialidade foram terríveis, sempre com chuva e frio. Lembro-me especialmente da semana de campo, de exercícios pelos montes, em que se dormia numas tendas miseráveis onde tinham de se encafuar três pessoas. Desse tempo guardo uma única boa recordação, além da camaradagem, que foi a preparação física com que saí de lá.

E depois de Mafra?

Fui para as Caldas da Rainha, para o Regimento de Infantaria 5. Ao contrário de Mafra, onde as condições eram péssimas, nas Caldas o quartel era relativamente recente. Quando acabei a especialidade, foi-me atribuído o posto de aspirante miliciano – era miliciano, ou seja, não era militar da academia militar. Fui colocado como instrutor, na escola de furriéis milicianos. Estive lá outros seis meses.

E foi então que vieste para Aveiro?

Foi. Em Novembro de 1972, penso eu, e fiquei até ao fim de 1974. Fui colocado ainda como aspirante no Regimento de Infantaria 10. Primeiro funcionou onde está agora a GNR, depois passou a funcionar ao pé do parque, no quartel que foi, entretanto, demolido. Quando foi o 25 de Abril, era aí que estava o RI10.

Que patente tinhas na altura?

Aí um ano depois passei a alferes.

Nessa altura já a família tinha sido atingida por uma tragédia, a morte do teu irmão na guerra…

Foi em 1971. Morreu em Angola, numa emboscada a norte de Luanda, ele e outro. Tinha 27 anos e dois filhos. E por essa razão não fui parar com os costados às colónias. Fiquei dispensado de ser mobilizado para o Ultramar. Os meus camaradas de curso em Mafra foram todos, sem exceção, para África.

Na tua juventude, início da vida adulta, sentias de alguma maneira a opressão do regime?

Sim, isso sentia-se. Havia muita reserva da parte das pessoas, evitavam falar em público a não ser em rodas restritas com quem se tinha confiança. Havia medo, a PIDE andava sempre alerta. Havia um clima de opressão e tinha-se notícias de pessoas que eram presas. O meu irmão ainda esteve uns dias preso no Porto, na Rua do Heroísmo. Houve uma altura em que conseguiu arranjar uma ou duas pistolas. Não era para se pôr aos tiros, mas tinha a mania das armas - também era caçador, como o meu pai. Sei que através de alguém a PIDE soube que ele tinha pistolas, alguém fez a denúncia. E a PIDE um dia, quase ao alvorecer, foi bater à porta. Dois fulanos levaram o meu irmão para o Porto. Era assim que as coisas funcionavam. A PIDE era omnipresente.

Tu tinhas 20 e tal anos, não?

Quando foi o 25 de Abril eu tinha 29 anos. Tinha bastantes leituras de assuntos relacionados com política. Tinha bastante consciência do regime em que vivíamos. Guardo uma boa recordação de uma livraria que já não existe, que era a Vieira da Cunha, já não te deves lembrar…

[A Livraria Vieira da Cunha situava-se no início da Rua Agostinho Pinheiro. Já fechou há muitos anos]

Não sei se não lembro. Não era na avenida?

Quase em frente ao Teatro Avenida…

Pois. Tenho uma vaga memória dessa livraria…

Fui conhecendo o senhor, embora não tivesse confiança por aí além com ele. Como livreiro lá conseguia arranjar os livros que só se arranjavam clandestinamente, e que eram postas à venda clandestinamente. A censura era implacável. Eu ia lá com frequência. Tinha uma espécie de uns fundos na loja, e quando ia lá lembro-me de ele dizer, em surdina, “tenho ali uma coisa interessante”. E também comprava discos…

Tens uma boa coleção de discos de vinil…

São para ti.

E entretanto conheceste a mãe…

Só depois do 25 de Abril. Acabei o serviço militar em Outubro de 1974, fiz três anos certos. Também estava aqui no quartel o Artur, meu cunhado e teu tio. Ele era familiar por parte da mãe de um dirigente comunista, o Francisco Miguel, que era do Alentejo e esteve preso muitos anos. Conheci o Artur na tropa e conheci a mãe por intermédio dele, em fins de 1974. E quando acabei o serviço militar e passei à reserva como tenente, tratei de fazer a minha vida. Comecei a dar aulas no Magistério Primário, dois anos, até 1976.

[Francisco Miguel nasceu em Baleizão, Beja, em 1907, filho de camponeses pobres. Na década de 1930 aderiu ao PCP e entrou na clandestinidade. Foi dos presos políticos que mais tempo passou encarcerado, num total de 21 anos, no Tarrafal, Caxias ou Peniche. Morreu em 1988]

E depois fizeste a tua vida como professor…

Depois fui para a Escola João Afonso fazer o estágio. Ainda estive lá três anos, onde também fui orientador de estágio. Depois fui colocado em Esgueira, onde fiquei até ao fim.

Aveiro nesse tempo era uma cidade muito diferente…

Era muito mais pequena, mais pacata. Quando eu era miúdo e adolescente, Aveiro-cidade era completamente separada dos arredores, como Esgueira. Eram mundos diferentes.

Havia muita pobreza?

Havia. As condições de vida nesse tempo eram más. Quando acabei a escola primária só eu e outro colega é que continuámos estudos para o liceu. Todos os outros foram trabalhar – começava-se a trabalhar com 10 ou 11 anos. As pessoas atualmente, das gerações mais novas, não têm ideia de como eram as condições de vida. Ainda me lembro de ver muita gente descalça.

Mas a tua família apesar de tudo vivia com algum conforto?

Era uma família da pequena burguesia. Não éramos ricos, longe disso. O meu pai começou por ser empregado de escritório, a minha mãe nunca exerceu.

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Quando estavas na tropa, de alguma maneira já pressentiam o que estava para acontecer?

Sentia-se que havia mal-estar, mas era uma sociedade muito fechada, havia medo. Nos quartéis quase não se falava de política, era perigoso. Mas pouco depois de eu sair das Caldas houve uma tentativa de golpe de Estado, no quartel onde eu estive.

[A 16 de Março de 1974, uma coluna de cerca de duas centenas de soldados saiu do Regimento de Infantaria 5, nas Caldas da Rainha, rumo a Lisboa, com o objetivo de derrubar o governo de Marcello Caetano. O golpe falhou e os revoltosos renderam-se, acabando detidos. A insurreição ficou conhecida como “intentona das Caldas”]

Quando chega o 25 de Abril estavas então em Aveiro…

Estava no quartel ao pé do parque. Era o tempo da guerra nas colónias e havia muita falta de militares do quadro, os que faziam a academia militar. Quase toda a gente era mobilizada para as frentes de guerra. E em 1974 eu era o alferes mais antigo e não havia nenhum capitão da academia, que era quem devia estar a comandar. Quando isso acontecia punham um miliciano a comandar a companhia. Como na altura eu era o oficial miliciano com mais antiguidade, fiquei a comandar a companhia. Houve uma altura em que tivemos de ir fazer exercícios de campo, para Avelãs de Caminho…

Em Anadia…

No dia 24 de Abril, estávamos acampados no meio do pinhal, e sobre o fim da tarde apareceu um capitão, o capitão Pizarro, que se dirigiu a mim para conversar comigo. Disse ao que vinha, que estava em preparação um golpe militar que ia ser desencadeado nessa noite e queria saber se nós estávamos dispostos a participar. Como era uma situação de muita responsabilidade e como não se tratava de tomar uma decisão só por mim, propus reunir os restantes oficiais e furriéis milicianos para ele expor a situação e em conjunto tomarmos uma decisão. Que me lembre, não houve ninguém que se opusesse à participação. Ele explicou que um pouco antes da meia-noite passaria na Rádio Renascença a canção do Zeca Afonso; se passasse era porque o golpe estaria em marcha. Ele ficou no acampamento connosco. O clima era de tensão, como é natural numa situação destas. E realmente perto da meia-noite passou a “Grândola vila morena”. E a partir desse momento o capitão, como oficial mais graduado, tomou o comando da companhia.

O teu primeiro impulso individual foi aderir ou sentiste alguma hesitação?

Tinha noção do que era o regime e ansiava por uma mudança. Se a decisão dissesse respeito só a mim, tê-la-ia tomado de imediato. Só que como era uma situação excecional e que envolvia outras pessoas, achei que era melhor ouvir os outros. Felizmente, todos concordaram.

A partir do momento em que a senha passou na rádio, o que aconteceu?

Começámos a preparar as coisas e as viaturas, aqueles camiões de caixa aberta com o toldo por cima. No acampamento ficaram alguns soldados, porque algumas coisas ficaram lá. Mas o grosso das tropas integrou a coluna.

Tens ideia de quantas pessoas eram?

Cada pelotão normalmente tinha 20 e tal soldados. Deviam ser uns quatro ou cinco pelotões, portanto seriam umas 80 a 100 pessoas.

E de Avelãs do Caminho seguiram para onde?

Metemo-nos nos camiões, era noite fechada. O capitão ia na viatura da frente, para traçar o itinerário. Em certas alturas nem tive bem a noção de por onde íamos, mas sei que passámos em Cantanhede, porque mais tarde, já depois de termos regressado do 25 de Abril, soube por um oficial miliciano aqui em Aveiro, que era quem estava de oficial de dia na noite do 25 de Abril, que tinha recebido uma chamada telefónica da GNR de Cantanhede a denunciar a passagem de uma coluna militar, o que foi considerado estranho. O oficial tomou conta do recado, mas não comunicou.

E foram diretos a Lisboa?

Fomos primeiro à Figueira da Foz, ao Regimento de Artilharia, onde também foi ter outra companhia de Viseu. Confluímos ali nós e a força de Viseu. Na Figueira demorámos um bocado porque quando saímos de Avelãs do Caminho nem sequer tínhamos munições, só tínhamos fogo fingido. Lembro-me de que uma viatura derrubou o portão do paiol de forma a abastecer de munições as tropas todas. E a partir dali pusemo-nos em marcha para sul. E já era uma força militar que infundia um certo respeito, já bastante longa e com peças de artilharia. Ao princípio da manhã entrámos em Peniche, porque esta coluna militar ia ao forte para a libertação dos presos políticos que lá estavam. A maior parte da coluna ficou estacionada à entrada de Peniche, junto a um bairro de pescadores, e foi um grupo mais pequeno ao forte.

[Peniche passou a receber presos políticos a partir de 1928. Com o 25 de Abril de 1974, são ocupados pelas forças militares diversos locais e equipamentos estratégicos, entre eles estabelecimentos prisionais de natureza política. Nessa manhã, chega a Peniche o Agrupamento Norte, onde está incluído o Regimento de Infantaria 10, de Aveiro. É apenas na madrugada de dia 27 que os 36 presos são libertados. Ainda no dia 25, o grosso da coluna militar segue para Lisboa, ficando às ordens do Posto de Comando na Pontinha]

Tu ficaste no bairro dos pescadores?

Sim, eu e muitos outros. E houve um pequeno episódio que me emocionou bastante: os pescadores e as famílias começaram a trazer coisas para os militares comerem e beberem, espontaneamente, sem ninguém lhes pedir nada.

E de Peniche então rumaram a Lisboa…

Quando as coisas no forte se resolveram, seguimos para sul, diretos para Lisboa. Chegámos pelo fim da manhã, já estava tudo resolvido. Havia muita gente na rua e tropas nos pontos mais estratégicos.

Lembras-te para onde foram, em concreto?

Não me lembro, sinceramente. Por ali estivemos à espera que os acontecimentos se fossem desenrolando. Via-se uma alegria muito grande nas pessoas… Estivemos ali umas horas e depois deram ordem às unidades que vinham de mais longe para regressarem. E assim fizemos.

Voltaram a Aveiro no próprio dia 25?

Chegámos a Aveiro no dia 26 a meio da manhã. Lembro-me de entrarmos na parada com as viaturas e de estar lá o comandante do quartel, que era conhecido dos meus pais. Depois disto até aos meus pais deixou de falar.

Depois disso ainda permaneceste na tropa mais uns tempos…

Isto foi em Abril, e ainda fiquei até outubro, sempre em Aveiro. Em outubro completei os três anos de serviço militar, que era o obrigatório, e passei à reserva como tenente.

E construíste a tua vida a partir daí…

Comecei a fazer a minha vida no civil. Já passaram 50 anos, mas ainda hoje sinto muito orgulho por ter tido a oportunidade de participar, de uma forma anónima. Só quem viveu os tempos anteriores ao 25 de Abril é que pode avaliar como era a vida antes, cinzenta, sempre com uma suspeição geral, e com um nível de vida muito mau.

 

Passaram três horas desde o início da conversa, com um almoço pelo meio. A minha mãe está também à mesa; o neto junta-se à refeição; a neta estuda longe. Foi uma viagem às memórias, para o meu pai. Foi uma viagem de descoberta, para mim. Os mais velhos são repositórios de conhecimento, saber e memória. Que nunca deixemos de os ouvir.

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