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Os Invisíveis I: Um sonho a mais

Sociedade

Encontro-me com Paloma Silva no jardim do Fórum. Sentamo-nos a uma mesa de madeira, ao lado de uma oliveira. Peço-lhe para não me tratar por “senhor Rui”, mas é isso que faz até ao fim da conversa. Esta brasileira de 31 anos nasceu numa favela de São Paulo. Chegou a Aveiro em outubro de 2019. É estafeta e entrega-nos comida em casa.

Nasceste onde?

Em São Paulo.

 

Como foi a tua infância?

A minha mãe é mãe solteira e tem três filhas mulheres, e então foi muito difícil, porque ela é empregada doméstica. Tinha de sustentar três meninas, com uma diferença de seis anos cada uma, praticamente uma criança cuidava da outra. Ela ganhava o ordenado mínimo. A gente nunca passou fome, mas passou necessidade – não ter roupa, não ter brinquedo… A infância foi bem puxada, sabe? Mas lá no Brasil as crianças são bem felizes – tem brincar na rua, e tem escola… A gente ficava muito tempo na escola e em ONG’s para não ficar jogado na rua, e quando minha mãe chegava do trabalho pegava a gente. Chegámos a passar noites sozinhas porque minha mãe tinha de ir dobrar o turno. A gente não pagava aluguer, morava de favor, mas tem sempre aquele dinheirinho que quem morava de favor tinha de pagar.

 

[ONG significa Organização Não Governamental]

 

Moravam mesmo em São Paulo?

No centro não, né?

 

O centro é só para os que têm dinheiro?

É verdade. É muito caro, não é para qualquer um. Na zona sul de São Paulo, perto do Campo Redondo. O senhor Rui já foi a São Paulo?

 

Não, nunca.

É uma favela, podemos dizer assim.

 

Então tens essa experiência de viver numa favela…

Sim. Para a gente que nasceu lá é normal. Só vemos como é que é quando a gente sai de lá. A minha mãe não sabia ler, não sabia escrever, não sabia se comunicar bem… Ela é da Baía e foi para São Paulo para tentar uma vida melhor e queria que a gente fizesse mais. Sempre cobrou a gente de ir para a escola, nos colocou em ONG’s, para nos desenvolvermos e não sermos igual a ela. Os pais sempre querem o melhor para os filhos.

 

Completaste a escola?

Sim. Fiz a universidade, Administração de Empresas…

 

Em São Paulo?

Sim, em São Paulo. Lá no Brasil trabalhava como encarregada de supermercado, no Atacadão. A vida normal… Tinha acabado de ser promovida e já comecei a arranjar casa para a minha mãe, algo melhor, porque a gente morava num T0, uma cozinha e um quarto…

 

[Atacadão é uma rede brasileira de supermercados]

 

Para quatro pessoas…

Isso. Hoje a minha mãe está lá sozinha, num T3, porque todo o mundo já saiu de casa. Mas no começo foi bem complicado.

 

As três irmãs saíram todas do Brasil?

Não. Estão todas no Brasil. Só eu é que saí.

 

Começaste a trabalhar com que idade?

Nessa ONG já colocavam a gente para trabalhar e pagavam um valor simbólico – cortar relva, fazer cimento, ajudar mesmo a construir a ONG. Desde os 8/9 anos que trabalho. Mas trabalho mesmo, com contrato, foi com 16 anos.

 

No tal supermercado?

Não. Fui trabalhar em telemarketing – arrumava modem. Fiquei lá por volta de cinco anos mas depois não tive desenvolvimento e eu queria mais e pedi demissão; no mesmo dia consegui no mercado.

 

No Atacadão…

Fui lá puxar carrinho, era a vaga que tinha. Depois fui embalar compras e abastecer e depois fui promovida para apoio à gerência e depois virei encarregada. E foi quando decidi vir para cá.

 

Nunca tiveste medo de trabalhar…

Não. Não pode, né?

 

Não te podias dar a esse luxo…

Não tinha oportunidade de ter medo. Se eu queria as minhas coisas, ajudar em casa, tinha de correr atrás. A minha mãe sempre passou isso para a gente. Ela é a minha inspiração. Ela saía de casa às quatro e meia da manhã e voltava para casa às oito da noite.

 

E vocês tinham tempo para ser crianças? Para brincar…

Sim. Vendo as crianças de hoje, penso até que era mais feliz – ficam muito presas na Internet. A gente não tinha a mãe por perto e ia para a rua, ficava na rua com as outras crianças… Foi uma infância feliz, mesmo faltando algumas coisas dentro de casa. A criança não enxerga isso, para ela é normal.

 

Como se chama o bairro onde moravas?

Jardim Aracati. Mesmo no meio da represa Guarapiranga, que abastece São Paulo. É como se fosse uma ilha, só tem um acesso.

 

[A favela Jardim Aracati é um bairro no sul de São Paulo com cerca de quatro mil moradores. O sistema Guarapiranga é o responsável pelo fornecimento de quase metade da água potável que se consome na cidade de São Paulo]

 

É uma comunidade muito grande?

É. Vive muita gente.

 

Faz-se uma associação quase automática das favelas com crime e delinquência. É uma zona perigosa?

No início era, quando éramos pequenos. Depois fizeram uma base de polícia e deu uma apaziguada. Mas em São Paulo de momento não tem lugares que não sejam perigosos, infelizmente.

 

[Um inquérito divulgado em Maio passado (da Atlas/CNN) mostra que a criminalidade é considerada o maior problema da cidade de São Paulo. Para 62,6% dos entrevistados essa é a maior preocupação na capital do estado]

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Então e que idade tinhas quando decidiste vir para Portugal?

Quando decidi vir tinha 25.

 

Foi uma decisão súbita?

Eu agora sou casada com a Fernanda mas na altura só namorava. Ela terminou a universidade e disse que ia para França. Eu estava trabalhando e fazendo faculdade e disse: então vai, eu vou terminar minha faculdade e aí eu vou. Ela ficou oito meses na França e como estava sozinha e não falava francês, não estava dando certo, apesar de ter trabalho. Aí chegou a altura de Natal, ano novo, aniversário, e começou a pesar…

 

Ela fazia o quê em França?

Fazia limpeza.

 

Mas ela tinha formação superior?

Era formada em Recursos Humanos. E aí decidiu voltar para o Brasil mas eu fiquei com isso na cabeça: não vou morar no Brasil, para mim não dá. Não tinha mais espaço de crescimento e também não queria viver com medo. Comecei a pesquisar um país para morar. Na altura a Argentina estava em alta mas depois pensámos: por que não Europa? Portugal, por causa do idioma, era um local para a gente se adaptar bem. Pesquisei e me apaixonei por Portugal. A princípio a gente era para ir para Braga mas dois meses antes de embarcarmos vi um vídeo de um senhor falando de Aveiro. Cancelámos o hotel em Braga e viemos para aqui.

 

Onde ficaram a morar?

Ficámos 15 dias num hostel em Ílhavo. Mas tínhamos pouco dinheiro – quando convertemos os reais em euros ficámos com 1.500 euros.

 

Vocês chegaram já com alguma perspetiva de trabalho?

Não. Não conhecíamos nada. Mas éramos jovens e não tínhamos crianças, decidimos arriscar.

 

E depois dos 15 dias no hostel?

Viemos para um quarto no centro de Aveiro, onde pagávamos 400 euros. Foi um mês antes de estourar a pandemia, no final de 2019. Chovia no quarto, caía água o tempo todo, só que Aveiro estava cheio, e foi o único lugar que encontrámos.

 

Que rendimentos vocês tinham?

Conseguimos um lugar de cuidador de idosos, na mesma empresa – eu cuidava de dois idosos e ela de outros dois. Trabalhei nove meses – cheguei a trabalhar dois meses sem folga. Depois conseguimos um T0 em São Bernardo, que era mais em conta, 295 euros, e a intenção era só sair de lá para algo nosso. Para isso precisávamos de dinheiro e comecei a trabalhar numa fábrica de peixe. Mas queria ter uma renda mais e foi aí que comecei a trabalhar como estafeta.

 

O que fazias na empresa de peixe?

Trabalhava até às 18 horas, fazendo limpeza de atum.

 

Era um trabalho difícil?

É pesado, sim. Depois de você aprender, tem de fazer nove caixas de peixe por dia – e cada caixa são 15 quilos. Teve dias em que fiz 15, 16 caixas com medo de perder o emprego – e aí podíamos ser despejadas.

 

Qual foi a primeira reação quando aterraram em Portugal?

A gente chegou e foi um choque cultural muito grande. Até na língua – a gente acha que é igual ao Brasil mas logo no aeroporto a gente não entendeu as perguntas que o agente da imigração estava fazendo.

 

O que mais contribuiu para esse choque cultural?

A alimentação, a forma de se portar… O brasileiro abraça todo o mundo, por mais que ele não te conheça. Ele chama para entrar na casa dele, para comer um churrasco…

 

O português não é assim?

Pois não. Depois de um tempo, quando se conhecem melhor, quando os portugueses gostam, eles gostam. Mas até então são bem fechados. Mas é a cultura e a gente tem de se adaptar.

 

Alguma vez te sentiste alvo de discriminação ou de racismo?

Uma vez um cliente não quis pegar o alimento das minhas mãos, mas foi uma vez, um caso isolado. Não posso dizer que em Portugal todo o mundo é preconceituoso.

 

Como é que te tornaste estafeta?

Trabalhava na empresa de peixe, onde estive dois anos, e durante o período da noite fazia as entregas. Muitas vezes a Fernanda ia comigo. Precisávamos de dinheiro porque a gente tinha um objectivo: só sair do T0 quando comprássemos a nossa casa.

 

Faziam as entregas de carro?

A gente tinha um Clio de 98, que comprámos por 450 euros [mostra uma fotografia do carro tirada com o telemóvel]. Era bem velho, chovia dentro… Também não tinha ar quente para desembaciar e enquanto uma dirigia a outra ia limpando com um paninho…

 

Quais eram as grandes dificuldades desse trabalho?

Encontrar os endereços. No início foi bem complicado.

 

Era uma boa fonte de rendimentos?

Cheguei a fazer 340 euros em sete dias. Era muito bom. E deu para juntar dinheiro para a nossa casa. Trabalhei e fiz entregas durante dois anos e meio. E agora voltei a fazer entregas de novo.

 

És estafeta outra vez?

Mas agora com uma motinha.

 

É um trabalho duro?

É um pouco. Nós, brasileiros, temos a facilidade da língua, mas vejo muitos indianos, por exemplo, que não falam nem o português nem o inglês direito, e para eles é mais difícil ainda.

 

Hoje em dia há muita gente a fazer este trabalho?

Há. Não tem nem espaço para entrar. Eu consegui porque já tinha conta activa, mas quem quer entrar hoje tem de aguardar na fila, às vezes fica um ano à espera.

 

Há bocado contaste que um cliente não aceitou comida da tua mão. O que aconteceu?

Fui entregar a comida, subi ao quinto ou sexto andar e ele disse “eu não posso pegar isso das suas mãos”. Pensei que era por causa da pandemia, mas ele falou “os meus princípios não estão de acordo com a sua raça”.

 

Deve ser tão duro ouvir isso…

Claro que é. Mas ia fazer o quê? Quando a gente nasce negra, pobre e homossexual, tem de ter a cabeça mais aberta e saber que nem tudo tem de ser encarado a ferro e fogo. A falta de respeito e a ignorância existem em qualquer lugar do mundo.

 

Entretanto saíste da empresa de peixe…

O contrato acabou e eles não renovaram por questões de documentação, e aí fui para outra empresa, onde trabalhava de madrugada. Então não dava bem para fazer entrega, e esse dinheiro fez falta, mas também a gente descansou mais. Mas agora voltei.

 

Estás em Portugal há quase cinco anos. Alguma vez te arrependeste?

No início sim. A gente tem um ego. Fiz universidade e tinha um plano de carreira e quando você se rebaixa – não é a palavra certa mas não estou encontrando a certa – a outro cargo, você pensa “por que eu estou fazendo isto?” Eu chorava e pensava “o que eu estou fazendo aqui?” Só que aí eu pensava por que eu saí do Brasil – queria qualidade de vida e tranquilidade.

 

Alguma vez fizeste as malas para voltar ou nunca chegaste a esse ponto?

Quase. Principalmente por questões familiares. As mulheres lá de casa sempre fomos muito unidas e então a gente nunca passou longe o Natal, o ano novo… A primeira semana aqui sem minha mãe, meu Deus…

 

Alguma vez foste ao Brasil desde que estás cá?

Não. Trouxe minha mãe e meu sobrinho a Portugal, para ver o que eu vivo hoje. Ficaram três meses. A Fernanda trouxe a mãe dela e agora o pai dela está aqui. Para mim é mais valioso mostrar para eles o que eles podem ter saindo do Brasil.

 

Achas que a tua mãe tem orgulho em ti?

Acho. Ela é bem dura, nunca vai falar isso. Mas eu sinto. Ela não tem coração mole, é da Baía, mas tenho certeza que ela tem sim.

 

As tuas irmãs nunca pensaram juntar-se a ti?

Eu queria. A mais velha tem filhos e tal… E a mais nova não quer, gosta da vida que tem lá. Cada pessoa é uma pessoa.

 

Essa é a tua grande tristeza? Estares longe da tua família?

Sim. Tenho três sobrinhos e dois deles nunca vi e nunca pequei no colo.

 

Em Portugal, e em Aveiro em particular, existe uma grande comunidade de brasileiros. Existe uma rede de suporte entre vocês? Fizeste amigos?

Conheço muita gente, mas não posso falar que é amigo. Amigos em quem confio e que coloco dentro da minha casa são poucos.

 

Em termos profissionais o que fazes agora, além de fazeres entregas?

Abrimos uma empresa no Brasil, de viagens, vendemos passagens aéreas, e aqui em Portugal faço mediação imobiliária. E as entregas são um rendimento extra.

 

A Paloma de hoje, de 31 anos, é uma mulher feliz?

Não posso falar que sou completa, mas eu sou feliz.

 

O que te falta para seres completa?

A minha família. Se a família estivesse aqui ia ser sensacional. Isso pesa muito até hoje. Por isso me emociono, até a falar… Mas conquistei o que eu queria. Quando vim para cá tinha um objectivo e hoje eu vejo que vivo esse objectivo que eu queria. Claro que a gente sempre vai ter um sonho a mais, sempre vai querer melhor. Mas hoje já falo que Portugal é o meu lar, e é difícil você considerar um lugar de lar, mas me falta a família.

 

E portanto não pensas voltar ao Brasil…

Só para passear. Mas primeiro quero trazer toda a minha família para conhecer…

 

Já conheces bem Portugal, além de Aveiro?

Já conheço de canto a canto. Pelo menos uma vez por mês a gente tenta conhecer um lugar diferente. E também a gente já foi a Espanha, a França, Londres…

 

Olha Paloma, obrigado…

Eu é que agradeço, senhor Rui.

 

É bom conhecer estas histórias…

A gente vê as pessoas trabalhando e não tem noção do que elas passam por trás daquilo. No caso do estafeta, você só sabe que a sua comida chegou fria, fora do horário, e acaba esquecendo que o estafeta se perdeu ou caiu… Temos de ter essa empatia.

 

Ela diz que gostou de conversar comigo. Eu digo-lhe o mesmo. Quero contar histórias como a dela, explico. Pergunto-lhe se conhece outros estafetas, empregadas de limpeza, funcionários de restaurantes. Ela diz que sim – e que me põe contacto com eles, se precisar. Pede-me para a avisar quando a entrevista for publicada. Despedimo-nos com dois beijinhos e desejo-lhe boa sorte. “Para si também, senhor Rui”.

No nº2 de Os Invisíveis, converso com um sem-abrigo que ‘mora’ numa tenda junto à estação.

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1 Comentário(s)

magda ribeiro
8 set, 2024

gostei muito. parabéns

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