“talvez um dia em abril/abril renasça mais forte/que este abril não é abril/é trevo de pouca sorte.” Assim escrevia António Vieira da Silva em “Marginal: poemas breves e cantigas” (2002). Mais de 20 anos depois, o cantautor e médico ilhavense, recentemente homenageado pela Câmara Municipal de Ílhavo, continua a notar que ainda há avanços e recuos relativamente aos ideais do 25 de Abril de 1974. Esses mesmos pelos quais lutou através das suas canções, algumas das quais foram proibidas pelo regime.
Adriano Correia de Oliveira e do José Afonso foram (e continuam a ser) as suas grandes referências. Aos 77 anos, prestes a fazer 78, António Vieira da Silva ainda continua a tocar e cantar, mas com menos frequência, admite em conversa com a Aveiro Mag. Ainda que não tenha nenhum cartão de militante, não virou as costas à política, integrando, por mais do que uma vez, listas do PCP. A nível associativo, colaborou com a Obra da Criança, com Os Ílhavos e com a Associação Chio-Pó-Pó e pertenceu à secção cultural do Illiabum Clube. Pertenceu à redação e foi diretor da “Mundo da Canção”.
Nasceu em Ílhavo?
Nasci no antigo hospital de Ílhavo. Há muitas coisas da infância, toda passada em Ílhavo, que já nem me lembro. Vivi bem, ainda que com a consciência de que havia grandes diferenças entre pessoas, principalmente, em questões económicas. O meu pai era empregado de escritório da fábrica da Vista Alegre e a minha mãe era costureira.
Quando estava no liceu, tinha uma professora de desenho, a professora Maria Vieira, da Ourivesaria Vieira, que se dava muito bem comigo e achava que eu desenhava muito bem. Perguntou-me o que é que eu pensava seguir. Disse-lhe que estava a pensar ir para Medicina. Ela disse-me: “Não faças isso! Só estás a ser influenciado pelas leituras do Fernando Namora e do Miguel Torga. Não vás. Acredito que possas ser bom médico, mas o curso é horroroso. É preciso marrar. Vais ficar estúpido”. Realmente, eu não gostei muito do curso. Andei por lá quase dez anos. É certo que perdi um na greve, mas se não fosse a greve creio que o ano também estaria perdido. Tinha um medo terrível dos exames. Chegava a fugir dos exames.
Acha que foi mesmo influenciado pelas leituras ou tinha a vocação de ser médico?
Saí de casa a dizer que ia inscrever-me em Matemática. Sempre fui bom aluno a Matemática, curiosamente, à exceção do último ano do liceu, em que fui mau. Quando estava na fila da secretaria da universidade pus-me a pensar e quando chegou a minha vez inscrevi-me em Medicina. A professor Maria Vieira chegou a dizer-me para repetir o liceu na área de Letras que, se fosse necessário, ela arcaria com os custos. Já que não ia para Arquitetura – que, no entender da docente, deveria ter sido a primeira opção –, pelo menos, ia para Letras. Voltar atrás e ter de aguentar isto tudo? Não. E fui para Medicina.
Fui para Saúde Pública e fiz o Serviço Médico à Periferia que, à época, ainda se fazia. Foi uma experiência muito interessante. Foi na Lousã. Era aquela época em que nós achávamos que íamos ter um país completamente novo. Trabalhámos muitas horas por semana e nunca exigimos horas extraordinárias. Fiz o Serviço Médico à Periferia com uma médica de Ílhavo, Isabel Casal. Gostei muito da experiência. Fartei-me de trabalhar, mas gostei.
Depois especializou-se em Saúde Pública...
Muita coisa da minha vida me aconteceu sem que eu o tenha planeado ou procurado. O doutor Gama Vieira, diretor distrital de saúde, vinha insistindo comigo para ir para a especialidade de Saúde Pública. A certa altura, fiquei cansado do hospital. Os doentes eram tratados como números – o cama cinco, o cama três. Encontrei o Gama Vieira na rua e aceitei ir para Saúde Pública. Fiz o curso em Lisboa e passado uns tempos ele disse-me que tinha de escolher o centro de saúde para onde queria ir: Penacova, Lousã ou Penela. Penacova, não, porque tem muitas curvas; Lousã, não, porque conhecia o delegado de saúde de lá e sabia que ia ter problemas; em Penela nunca estive... fui para Penela.
No dia em que cheguei a Penela é que percebi que já lá tinha estado. Que barraca!
Tinha estado lá a cantar a convite de uma escola num salão. Tinha lá estado em ’76, quando aquilo ainda estava muito quente. No palco, estavam algumas pessoas de Penela e o padre. A plateia era quase toda de alunos do ciclo. Durante o concerto, cometei com os jovens que, ao contrário do que se dizia na altura, os comunistas não comiam criancinhas. Calhou, por acaso, em conversa. Eu era simpatizante do PCP, mas nunca fui filiado. E um dos putos responde-me: “Mas o senhor padre na missa diz que sim!”. Que barraca! “O senhor padre não mentiu. Ele pensa que é verdade. Deve ter ouvido isso e acreditou”, disse, na altura.
Ora, quando, passados três anos, eu regresso a Penela como médico, o padre era o mesmo. Pensei logo: estou arrumado! Mas fiquei a dar-me bem com o padre.
Chegou, inclusive, a ser candidato à Câmara de Penela...
Sim. Cheguei a ser candidato pela APU, por insistência dos camaradas de Coimbra. Apanhei um susto dos diabos, um dia, quando saí à rua e vi a minha cara – uma fotografia horrorosa - num cartaz enorme. O que é certo é que a campanha correu bem. A vitória certa era sempre do PSD. Do lado do PS, o doutor Arnault – ainda antes de nascer o Serviço Nacional de Saúde – chegou a pedir-me para largar a APU e integrar a lista socialista, mas eu disse-lhe que não faria isso.
Avisei a malta para não entrar em guerras e, durante a campanha, cheguei a sentar-me à mesma mesa de café com o candidato do PSD e do PS. É claro que tivemos uma votação miserável, mas lá deu para eleger um deputado à assembleia municipal.
Como foram os tempos de faculdade?
Entrei para a universidade em 1965. Apanhei o maio de ’68, a crise de ’69... Em ’68 estive num grupo de fados, um grupo de malta nova. Depois comecei a experimentar compor coisas minhas e acabei por começar a cantar. Eis outra coisa que me aconteceu sem eu pedir: concorri a um concurso de música popular na Figueira da Foz, organizado por um programa de rádio – a presença coimbrã, do Sansão Coelho. Eu tinha trabalhado para ele na altura da Greve, a arranjar publicidade para a rádio, por isso, quando ele organizou este festival, também me pôs a ajudá-lo. Só que começámos a ver que havia poucos concorrentes. Ele disse “Tens de concorrer! Sais da organização e concorres”. Eu concorri e tive a sorte de ganhar. O júri era composto por jornalistas. Foi nessa altura que conheci o Fanhais e o Adriano [Correia de Oliveira]. Numa segunda sessão, quem também pertenceu ao júri foi o Mário Castrim e a Alice Vieira.
O prémio desse concurso era gravar um disco, mas o prémio nunca apareceu. Foi-se adiando, adiando... Mais tarde, com a minha ajuda, o Sansão Coelho organizou um espetáculo no pavilhão de Ílhavo. Precisávamos de um artista conhecido e ele lembrou-se da Mirene Cardinalli. Ela era amiga dele e conseguiu que ela participasse.
No fim do espetáculo, para meu espanto, a Mirene disse-me que tinha gostado muito de me ouvir e que ia falar com a editora dela para eu gravar um disco. Eu agradeci-lhe, mas fui um bocado cínico porque achei que aquilo não passava de simpatia de circunstância. Pouco tempo depois, telefonaram-me de Lisboa. “Prepare-se para vir a Lisboa porque o Francisco Nicholson vai telefonar-lhe”. Fui a Lisboa para ser ouvido pelo Nicholson e pelo Armando Cortez num estúdio no Chiado. Naquela tarde cantei para eles, toquei mal viola (ainda hoje toco). Cantei três cantigas, mas para poder lançar o EP era preciso mais uma. Cantei a “Canção para um povo triste” e o Cortez disse logo “Essa não”. “Essa não, porquê?”, perguntou o Nicholson. “Porque vai ser proibida”, justificou Cortez. “Oxalá que sim!”, atirou Nicholson, “vende-se mais!”. E lá ficou. E foi proibida.
Vocês já escreviam canções com a noção de que seriam proibidas. Era a vossa forma de luta?
As minhas cantigas eram todas contra o regime, por influência do Adriano [Correia de Oliveira] e do José Afonso. Acreditávamos que era a nossa forma de lutar, que tínhamos alguma influência.
Valeu a pena?
Sim. Acho que, cinquenta anos depois, isto ainda não está resolvido. Há avanços e recuos. Não foi bem aquilo que idealizávamos, mas se calhar isso também não era possível.
Teve canções censuradas?
A “Canção para um povo triste” foi proibida. Eu vivi na Rua Antero de Quental, em Coimbra, junto à sede da PIDE. Todos os dias me cruzava com agentes da PIDE, andavam todos de gabardine. O Nicholson ligou-me a dizer para, nos tempos seguintes, não andar a cantar por Coimbra. A PIDE tinha estado na editora, mas aquilo era só um escritório, não tinha discos armazenados. Os discos estavam com o Arnaldo Trindade, no Porto, para distribuição. O Nicholson avisou o Arnaldo Trindade e, quando a PIDE chegou ao armazém para apreender os discos, já só tinham onze exemplares dos 500 que tinham sido editados – houve, mais tarde, uma segunda edição de 1000. O agente da PIDE perguntou se podia ficar com um, uma vez que a filha colecionava tudo quanto era apreendido. Para registo só foram apreendidos dez discos. No mesmo dia que apreenderam o meu disco apreenderam o “Je t´aime moi non plus”.
... “canto o desespero
fatalista
de quem sofrendo
se deixa ficar
olhos cansados
enxada na mão
trabalhando a terra
que lhe vão roubar
canto o meu poema
de revolta
ao povo morto
que não quer gritar
que já são horas para ser feliz
que é chegado o dia do medo acabar.”
Excerto de “Canção para um povo triste"