Há tanta coisa para destacar no percurso de Ricardo Neves que é difícil pegar num só tema para começar a contar a sua história. Conforme ele próprio diz, tem “vida dupla”. É cientista – faz investigação na área das células estaminais, imunoterapia e cancro, no Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra – e também é cantor. Acabou de integrar dois espetáculos do famoso pianista Lang Lang – um em Braga e outro em Abu Dhabi -, mas esse reconhecimento não lhe subiu à cabeça. O mesmo acontece com as conquistas académicas, uma vez que nos pede para deixar cair o habitual “Professor Doutor” durante a entrevista. A culpa deve ser da informalidade que encontrou em Oxford, durante o seu doutoramento, ou do facto de vestir a pele de “comunicador de ciência” – ora aí está mais uma faceta. Ou talvez do surf, desporto que funciona como uma espécie de terapia, e que o ajuda a continuar a apreciar “acordar num dia de sol, sem vento”. No fundo, Ricardo Neves Pires das Neves, continua a ser o “Neves das Neves” para os amigos, “um aveirense de gema nascido e criado no bairro da Gulbenkian em frente à prisão, onde jogou muito à bola contra o bairro da praceta do Café Tako”.
“Apesar de não serem da família, o meu pai e a minha mãe tinham o mesmo apelido e decidiram colocar Neves duas vezes no meu nome”, conta, notando que até nem é nada dado ao frio e à neve. Fez todo o seu percurso escolar em Aveiro, jogou basquetebol no Beira-Mar, “no saudoso pavilhão do Alboi”, nota, e tirou Biologia na Universidade de Aveiro. Estudou canto no conservatório, foi solista da Magna Tuna Cartola da Universidade de Aveiro, cantou com a Banda Amizade e com vários outros projetos um pouco por todo o país.
Chegou a equacionar seguir a via da música. “A ideia era ir estudar para a Áustria ou Alemanha e depois fazer a vida de cantor de ópera, o que em Portugal não tem assim tantas oportunidades. Continua a existir só o Teatro Nacional de São Carlos e não há muita gente que vá à ópera, é só para uma elite. E eu não me estava a ver a viver toda a vida fora de Portugal, a cantar ópera por aí. E também não era só isso que eu gostava de fazer, também gosto de cantar Sting e Bob Marley”, enquadra. Decidiu, então, ser cientista e “ter uma vida assim meia dupla e andar a cantar por aí”. “E tem sido isso que eu tenho feito”, refere este aveirense de 50 anos – acabados de completar.
Comecemos por falar sobre o investigador. Doutorou-se em Oxford e ainda esteve algum tempo a trabalhar no Reino Unido, mais concretamente no Medical Research Council. De regresso a Portugal, a sua carreira tem-se repartido pela investigação propriamente dita e pela comunicação de ciência, vertente onde tem dado cartas através do “Talk-show: Stem Cells Rock!”. “Basicamente, é um talk show ao estilo do Herman José ou do Jimmy Fallon. Tem uma banda de rock de suporte, na qual eu estou integrado. Eu aí faço esta ‘esquizofrenia’ de ser cientista e ao mesmo tempo ser músico”, refere, a propósito do projeto que envolveu a Casa da Música, a Universidade de Coimbra e a Fábrica Centro de Ciência Viva de Aveiro. “Estamos a levar este talk show ao público e está a ser muito giro. Vamos agora tentar fazer uma itinerância a nível nacional, levá-lo a outros municípios e trazer as escolas”, acrescenta.
As células estaminais trocadas por miúdos
Esta produção, que tem como público preferencial os adolescentes, tenta explicar o que são células estaminais e a sua importância para a nossa saúde. “Todos nós temos células estaminais no nosso corpo. Só conseguimos levantar-nos de manhã, tomar café e ir trabalhar, porque há um reservatório de células estaminais que permite que façamos isso. Se elas falharem, ficamos doentes e não temos grandes hipóteses. As pessoas têm ideia de as células estaminais serem aquilo que se recolhe quando os bebés nascem e depois ninguém percebe para que é que aquilo serve. Mas as células estaminais são muito mais que isso e as pessoas não fazem ideia de que têm esse reservatório no seu próprio corpo. Então, é nisso que eu trabalho. Tentar consciencializar, principalmente os teenagers, porque é a partir dessas idades que se começam a ter alguns comportamentos de risco, que se eles maltratarem o seu corpo nessa idade vão viver muito menos. As células estaminais promovem a regeneração do nosso organismo”, enquadra o investigador.
E essa a mensagem que o “Stem Cells Rock!” tenta passar, “utilizando linguagem que os miúdos dessas idades percebem”. “Adaptámos também o estilo musical – temos um rap, temos um funk, música adaptada aos gostos dessas idades - e passamos nessas músicas a mensagem”, explica Ricardo Neves, a propósito do talk show que também aborda a temática do cancro. “As pessoas não têm noção que a maior parte dos tumores surgem a partir de problemas com as células estaminais. E que surgem dos excessos, de mutações que são causadas pelos excessos”, adverte.