Aonde pertence Bárbara? Há quem a tente desapossar do seu lugar, diz ela, fazê-la sentir-se estranha no seu próprio chão. É uma violência, uma agressão, e disso falamos durante uma hora. Bárbara Rosário é uma escultora aveirense de 30 anos. Sugere falarmos numa esplanada. Consulto o site do IPMA e o que vejo não é animador: ícones de nuvens e gotas de chuva em todos os dias da semana. Combinamos por isso encontrar-nos na FNAC, numa manhã de chuva persistente. Eu sou o primeiro a chegar e sento-me numa mesa junto aos janelões de vidro. Ela aparece à hora marcada, envergando um casaco cor-de-rosa quase até aos pés. Pede um chá, que vai bebendo em pequenos goles. Falamos de racismo, do que é ser jovem hoje, de desencanto, de expectativas que não se cumprem. Não é, sinto, uma conversa fácil para Bárbara. Falar da violência que nos é infligida é doloroso, sacode-nos por dentro, os escombros que transportamos em nós esboroam-se um bocadinho mais. No fim parece exausta e começa a enrolar um cigarro. Esperará por certo que o fumo ajude a levar o cansaço para longe.
Tu assumes-te como afrodescendente. Queres-me falar das tuas origens?
Eu nasci aqui em Aveiro. A minha mãe era portuguesa, da zona da Beira Baixa. A minha família materna era desse lado.
De onde, em concreto?
De uma aldeia pequenina em Mação. Chama-se Casal do Barba Pouca.
Casal do…?
Casal do Barba Pouca. É um nome particular. As minhas raízes maternas são daí. O meu pai nasceu em Cabo Verde e veio para cá já há muito tempo. Isso faz com que eu seja afrodescendente, nesse sentido. Sou negra, de pele clara. É um fator de alteridade aqui em Aveiro, em Portugal. Eu entro num Uber, por exemplo, e dizem-me sempre “a menina é de onde?” “Sou daqui”. “Ah, mas é daqui mesmo?”. Só descansam quando eu digo “o meu pai é de Cabo Verde”. Porque a minha pele não é daqui, na cabeça deles. Então sou confrontada com isso muitas vezes, diariamente.
E isso provoca-te o quê? Revolta? Desconforto?
Não é propriamente desconforto. Claro que isto é todo um processo. Ou seja, se eu nasci cá, eu nunca senti que não era de cá. Mas foi-me afirmado isso por outros. Outras pessoas estavam-me a retirar sempre deste local.
Quando me perguntam “mas é daqui mesmo?” estão-me a retirar pertença a este lugar.
Sentes que isto é uma espécie de racismo, mais ou menos encapotado?
Não, não é uma espécie de racismo, é racismo mesmo. São microagressões que acontecem no dia-a-dia, de forma muito despenalizada. As pessoas nem se apercebem da gravidade que têm. Mas basicamente estás a retirar um espaço de pertença à pessoa. Estás a determinar, a heterodeterminar, o que é que a pessoa é e o que é que pode ou não dizer que é.
Tu tens 30 anos. Ao longo destes 30 anos sentes que esta mentalidade nossa, portuguesa, sofreu algum tipo de evolução pela positiva?
Eu acho que atualmente tem piorado. Até com o crescimento da extrema-direita em Portugal e no mundo, isso tem um impacto muito grande nas pessoas de minorias. Sejam elas quais forem, estão a ser atacadas. Portanto não considero que tenha sido uma melhoria. Mas claro que nestes 30 anos eu só tive consciência e só consegui processar mais recentemente. É um processo de identificação de quem se chama minoria. Não percebes desde que nasces “ah, sou diferente, sou uma minoria no contexto em que estou”. Isso só acontece de forma tardia. Só me aconteceu há pouco tempo, quando comecei a confrontar-me mais vezes, especialmente ao estar em Aveiro. Quando eu estava no Porto e me perguntavam se eu era dali, eu dizia que não e se calhar ficava por aí... Embora também houvesse na mesma estas questões... Quando eu estava por exemplo em Esgueira, onde nasci, e me perguntavam “mas a menina não é daqui?”… Quer dizer, bate de outra forma, não é? E começas a processar as coisas de outra forma. Mas, portanto, acho que devíamos estar muito mais à frente do que estamos e acho que está a haver um retorno muito grande.
Em Aveiro é pior do que no Porto, é isso que estás a dizer?
Não, não é isso que eu estava a dizer. São violências na mesma, mas era diferente no Porto sentir isso do que sentir em Aveiro, onde eu nasci. É só isso, não estou a dizer que no Porto é melhor do que aqui, de todo.
No Porto, uma vez que é uma cidade maior, mais cosmopolita, a mentalidade poderia ser eventualmente diferente. Aveiro é uma cidade mais fechada, mais conservadora...
Sim, sem dúvida, mas eu não estava a fazer essa comparação. Mas sim, Aveiro é uma cidade mais conservadora, com menos diversidade. Agora estamos todos em bolhas, mas lá tens mais bolhas por onde escolher e por onde circular do que aqui.
Disseste-me que o teu pai veio para cá de Cabo Verde. Ele veio em que circunstâncias?
Veio para cá estudar, na universidade. Veio novinho, com 22 anos, era mais novo que eu. Foi dos primeiros cabo-verdianos a vir estudar para a Universidade de Aveiro, se não o primeiro.
Veio estudar o quê?
Um curso da área de eletrónica.
Ele relata-te episódios de racismo que tenha sofrido cá em Portugal?
Sim. Claro que cada pessoa tem o seu processo, o seu tempo e forma de lidar com as coisas. Claro que as coisas estão agora a ficar piores e inevitavelmente uma pessoa sente mais e sente-se mais agredida. Mas sim, já me contou algumas histórias… O típico de uma pessoa negra chegar, especialmente naquela altura, quando havia muito poucas pessoas. Agora Aveiro, apesar de tudo, já tem mais, por causa da universidade e por outras razões. Mas na altura tinhas muito menos. Claro que tinha dificuldade em encontrar casas a alugar, por exemplo. Assim que chegava, não alugavam a casa. São africanos, são cabo-verdianos, são o que for... Por outro lado, como havia menos diversidade, as pessoas não eram colocadas em “caixas” tão específicas. Porque agora ouve-se muito “ah, os brasileiros, ah, não sei o quê”. Como há mais pessoas, as pessoas parece que se viram mais contra elas. Mas não só na altura como agora há imensas situações. Eu também estive a dar aulas, em 2023-2024, e vi isso no espaço escolar. É assustador o que falta resolver em termos de educação contra a discriminação, não só racial como de género ou de orientação sexual. Está nos regulamentos das escolas, mas não há medidas eficazes. Há muita falta de formação específica para os professores, para os miúdos, para a comunidade escolar em geral.
Achas que as crianças são violentas nesse sentido? Em termos de discriminação racial, discriminação de género?
Sim. Ou veem isso em casa ou na televisão ou nas redes sociais... Pessoas como o inominável…
O inominável é o André Ventura?
Sim. Eles replicam. Não têm maturidade para perceber o impacto que aquilo tem. Eu cheguei a ouvir coisas como “volta para a tua terra”… Isto entre miúdos. Só faltava o “preto de merda”. Entre crianças... Eu estava a dar do 7º ao 9º... E as consequências que isso teve eu não achei que fossem severas o suficiente. A mim chocou-me. Também o facto de não haver uma quantidade representativa de professores racializados é demonstrativo de uma estrutura que vai toda nesse sentido. Na escola em que eu estava havia muita diversidade, muitos meninos que vieram do Brasil, dos PALOP... Ou seja, há diversidade. Tem que se trabalhar isso. Tem que se formar os professores, falar com os meninos… Não bastam medidas isoladas.
Além desses atos mais explícitos de violência – “vai para a tua terra”, etc. - depois há outro tipo de atos de discriminação como o que falaste em relação à habitação, por exemplo, em que te negam casa por seres negro. Isso também existe muito?
Sim, sim. Pois, é esse o problema. São mais difíceis de denunciar, e têm um impacto muito grande, porque são muito frequentes. Isso no estado emocional das pessoas racializadas tem um impacto muito grande. Há pequenas exclusões, pequenas desumanizações que são feitas.
És uma pessoa desiludida com Portugal por causa disso?
Sim, sem dúvida. Nós nem temos termos linguísticos específicos para abordar as coisas. O Brasil, por exemplo, tem o termo da parditude. Esse termo é essencial para começar a falar - não quer dizer que o termo esteja certo, há imensas discussões sobre isso. Mas o termo pardo, parditude, já permite uma consciência de colorismo, que aqui não temos. Eu uso afrodescendente ou negra, mas nenhum dos dois reflete a minha condição exatamente, em específico. Precisamos ter noção de colorismo. Uma pessoa como eu, de pele clara, que quase passa por branca, é diferente de uma pessoa negra retinta. Os graus de violência, os graus de exclusão, são diferentes. Nós nem sequer temos vocabulário para falar isso. Estamos muito atrasados. Portugal não fala sobre o seu passado colonial. Nos livros da escola é falado como uma grande expansão. Não se fala que andámos a escravizar pessoas, a desumanizar pessoas e a invadir outros países e extorqui-los. Há um imenso trabalho a fazer.
Tu és uma pessoa politicamente ativa? Não necessariamente em termos partidários…
Sim, sou politicamente ativa, mas não sou partidária.
Como é que manifestas no concreto o teu pensamento sobre estas coisas?
Atualmente tenho estado a incluir mais essa questão no meu trabalho, que também é uma forma de ativismo. Também estive no Aveiro Feminista, embora agora esteja mais fora… Tento participar sempre que posso no Aveiro Feminista, na comunidade LGBT… Tento participar na sociedade dessa forma, dar o meu contributo.
A tua obra mais recente, “Cão no couro”, é descrita como um trabalho em que exploras “a violência da herança colonial”,” uma revolta contra o racismo estrutural”, etc. A arte também serve para isso, para te manifestares politicamente contra aquilo que achas que está errado...
Sim. E sempre partindo de uma experiência própria, mas tentando chegar a uma experiência coletiva, tentar tocar o outro e tentar fazer com que as pessoas pensem sobre as coisas. E que as pessoas se relacionem com isso, porque são coisas que todos vivemos ou observamos, estamos todos no mesmo contexto. Até porque somos uma sociedade muito capacitista e em algum momento da sua vida qualquer pessoa pode sofrer destas questões da discriminação.
[capacitismo é um termo que descreve a discriminação e o preconceito direcionados contra as pessoas com deficiências]
Tu és uma artista. Como é que se deu a tua entrada nesse mundo? Já tinhas antecedentes na família, por exemplo?
A minha mãe era professora de educação visual…
Falas na tua mãe no passado. Ela já morreu?
Sim, quando eu tinha 15 anos.. Foi complicado - depois podemos falar sobre isso... A minha mãe sempre teve uma relação grande com as artes. Estudou na António Arroio, em Lisboa.. E o meu pai, apesar de estar mais na área da eletrónica e da robótica, etc., também sempre teve um gosto grande pelo desenho. Cresci nesse ambiente. Mas desde pequenina eu era mais moda. Desde os 10 anos, ou menos, era só desenhar design de moda.
Desenhava coleções, sapatinhos e tal, fazia tudo direitinho… Mas depois cheguei ao secundário e percebi que gostava mais era de desenhar e de produzir. E houve uma professora que me disse “mas por que é que não vais para Belas Artes?” Mas achava que não tinha condições para ir para Belas Artes porque sentia que só tinha capacidade para moda, porque era aquilo que eu tinha trabalhado. Mas então disse “ok, tenho condições, vou para lá para aprender, estamos todos em pé de igualdade, bora…” E fui assim para Belas Artes no Porto, para as artes plásticas. O primeiro ano é um ramo comum, e depois tens que escolher escultura, multimédia ou pintura. Eu se calhar identificava-me mais com pintura, mas ia à descoberta e no primeiro ano tens de experimentar os três ramos. Experimentei a escultura e foi aí que decidi. Foi a partir de experimentar.
Já voltamos aí, vamos só dar aqui um salto para trás. O teu pai veio estudar para Aveiro. Foi cá que conheceu a tua mãe?
Sim, na universidade. Ela também estudava lá.
Tu nasceste cá em Aveiro. Como foi a tua infância? Normal?
Normal não diria, mas ainda estou a processar muita coisa.
Queres falar disso?
Estas questões raciais manifestam-se logo desde a infância, não é? Embora tu não as consigas processar. Então ainda estou a articular um bocadinho... Depois também sempre fui muito de ideias próprias, e isso, seja entre adultos seja entre crianças, nunca é muito propício. Então tinha algumas questões de sociabilidade, mas nada de muito grave. Não posso dizer “ai, tive uma infância má”. Não, tinha tudo, os meus pais davam-me condições necessárias para estar bem. Mas a partir da adolescência todas as coisas pioraram. Com a morte da minha mãe, o meu pai ficar sozinho… Vieram as complicações.
Perder a mãe aos 15 anos foi um momento de viragem na tua vida?
Sim, sim, sim. Morreu, mas antes teve um ano de doença, que teve um impacto muito grande em todos nós. E passados dois anos fui para o Porto sozinha, com a família meio fragmentada. Depois passados uns anos também morreu a minha avó. A minha mãe era filha única, tínhamos uma família pequena. O meu pai tem alguns familiares em Lisboa, mas a grande parte da família está em Cabo Verde. E os meus avós paternos estão na Suécia. Ou seja, tinha mais contacto com a família branca da minha mãe. Depois, em 2019, voltei para Aveiro e o meu avô estava sozinho lá na aldeia, tivemos que o ir buscar porque ele já não estava bem, estava sozinho, muito isolado... Ficou a viver connosco aqui – sobretudo comigo, porque o meu pai estava menos em casa e o meu irmão estava a viver com a namorada. Eu basicamente fiquei cuidadora informal do meu avô, com 22 anitos, 23. Foi muito pesado. Entretanto mete-se a covid e eu fiquei fechada em casa com o meu avô, a cuidar dele, e a tentar sobreviver. Nós não nos dávamos bem - especialmente quando começa a envolver demência é muito complicado gerir e é emocionalmente difícil. E eu com 20 e poucos anos tive que enfrentar isso basicamente sozinha. Depois acabámos por conseguir pô-lo num lar, porque eu não conseguia tratar dele da forma que ele precisava. E passado um tempo também faleceu. Ou seja, foram três mortes muito seguidas. Era o nosso núcleo familiar essencial.
Sentes que esta sucessão de acontecimentos dramáticos na tua vida te fez crescer à força, crescer à pressa?
Sim, inevitavelmente. Na altura não se falava tanto em terapia e apoio psicológico. Mesmo agora é o que é, imagina há 15 anos. E senti muita falta disso. Agora é que consigo falar sobre isso. Já requereu cinco anos de psicoterapia semanal para poder falar disto. Antes não falava, foi muito reprimido.
A parte branca da tua família alguma vez hostilizou a parte negra da tua família?
Sim, mas ainda não estou propriamente confortável para falar sobre isso, ainda estou a processar.
Foste então para o Porto com 18 anos, sozinha. Como é que foi essa transição?
Foi complicada. Por acaso levei uma amiga; conhecíamo-nos mal mas ela foi na mesma altura para o Porto e acabámos por viver juntas e foi um bocadinho de apoio. Mas foi muito complicado, eu ainda estava a processar estas questões todas e estava a tomar antidepressivos. Foi uma adaptação complicada, mas na escola sempre consegui cumprir com tudo sem problema e socialmente também ia fazendo as minhas coisas, não estava fechada em casa nem nada. Conheci muita gente, foi ótimo. Comecei a conhecer mais pessoas mais ligadas aos meus interesses. Em Aveiro não tinha muito isso, e continuo a não ter. Foi um crescimento importante. Começar a trabalhar e a estudar coisas que me interessavam e me estimulavam, conhecer pessoas diferentes...
Regressaste a Aveiro por causa da covid?
Por causa do meu avô. Terminei o mestrado em Outubro de 2019, em dezembro fomos buscá-lo à aldeia, tivemos de tomar a decisão de o trazer connosco, e em fevereiro de 2020 meteu-se a covid. Fiquei cá, acabei por deixar a casa no Porto.
Como foi voltar a Aveiro?
Complicado. Ainda estou amargurada.
Se dependesse de ti, tinhas ficado no Porto ou ido para outro sítio?
Sim, Porto ou ir para outro sítio. Não foi uma escolha... Economicamente não tinha capacidade nenhuma, não é? De repente foi o fim do mundo. Tinha acabado o mestrado, ia começar com calma, e vai tudo pelo ar.
Pela forma como falas, parece-me que sentes que ficaste presa a Aveiro. Se não tivesse sido assim, como é que imaginas a tua vida?
Não consigo propriamente visualizar. Uma pessoa tem que se adaptar, e eu adaptei-me. Tive dois anos mais complicados, mas fui sempre fazendo exposições, mandando candidaturas, etc. Também tentei alguns empregos, mas sem sucesso.
É possível viver da arte, da escultura, em Portugal? Ou tens de ter outras fontes de rendimento em paralelo?
É muito difícil viver só da arte. É possível, mas implicaria também um maior financiamento do Estado, melhores políticas públicas. É uma função essencial da sociedade e não é dado devido valor, nem devido investimento.
Tu deste aulas. Também para compor as finanças, imagino…
Sim, mas mesmo assim, quer dizer… Com o panorama atual da habitação, não é possível… Eu estava a dar seis horas por semana de educação tecnológica, do sétimo ao nono. Embora eu não tenha a profissionalização, como havia falta de docentes já é permitido. Estava a dar seis horas mas era esgotante… Eu sou filha de dois professores, mas eu nunca quis ser professora. Estes últimos anos têm sido muito complicados para os professores… Fui contrariada mas dei o meu melhor. Mas saía sempre esgotada. Dá para conciliar, mas esta ideia de que o artista consegue fazer malabarismo entre duas profissões é injusta. É desanimador.
Mas sentes que apesar de tudo o ensino foi uma experiência enriquecedora?
Sim. Não é algo que não vá voltar a fazer outra vez, não tenho essa opção. Enriquecedora, mas cansativa. As questões de discriminação esgotavam-me. Ver isso e não conseguir fazer nada... Até porque não tinha experiência.