Nas vésperas daquele que é, provavelmente, o maior acontecimento popular na cidade, a Aveiro Mag entrevista João Quintaneiro, um dos mordomos responsáveis pela preparação das Festas de São Gonçalinho recentemente inscritas no inventário do Património Nacional Cultural Imaterial.
Como é que se tornou mordomo?
O processo da passagem do ramo é individual, ou seja, no final do segundo ano de mandato, cada mordomo que está em funções escolhe a quem entregar o seu ramo. Cabe, depois, à pessoa que recebe o convite, aceitar ou recusar o mesmo.
Eu fui parar à Beira-Mar [João Quintaneiro reside em Santa Joana] por via da grande amizade que tenho com o Bernardo Limas. Fizemos o secundário juntos, tivemos projetos comuns em Aveiro, nomeadamente, a Associação Tertúlia Aveirense, e ele achou que eu poderia ter o perfil indicado.
Se, por um lado, o Bernardo sabia que a minha vida profissional era algo complicada e preenchida para assumir o testemunho de mordomo – uma função que, atualmente, dada a dimensão da festa, exige muito trabalho e responsabilidade –, por outro, ele também conhecia o meu gosto por Aveiro, pela identidade local, pela valorização das tradições e pela manutenção daquilo que nos caracteriza. Sempre nos pautámos por esse pensamento, daí o Bernardo ter pensado: “Por muitas voltas que dê à cabeça, sinto que és a pessoa certa para dar continuidade a este legado”.
É, por isso, num jantar entre amigos, em novembro de 2022, que o Bernardo Limas me faz o convite, já meio entre lágrimas, para que me tornasse mordomo de São Gonçalinho. Aceitei e acabei por receber o ramo naquela arruada tradicional de segunda-feira, o último dia da Festa, em janeiro de 2023. Eu e o meus atuais colegas entrámos em funções pouco tempo depois.
Está prestes a chegar a altura de ser o João a passar o ramo. Está preparado para dar esse passo?
Sim. Não sei quem é que, lá atrás no tempo, terá definido que os mandatos de mordomo de São Gonçalinho teriam a duração de dois anos, no entanto, parece-me, de facto, o timing mais ajustado. Creio que este sentimento é transversal a todos os mordomos, pelo menos, a julgar pelas opiniões daqueles com quem tive a oportunidade de conversar. No final da primeira Festa que organizamos, há sempre aquele sentimento de dever cumprido, mas também uma espécie de entusiasmo de quem sente que, finalmente, está “bem oleado” e, por isso, quer cumprir mais um ano. O mandato de dois anos permitem garantir alguma tranquilidade, trabalhar com estabilidade, angariar apoios e assegurar receitas a médio prazo... Mas depois também tem este lado engraçado: ao final de dois anos, fruto do empenho, das horas despendidas, do tempo que dedicamos à causa, sentimos que o cansaço se apodera de nós e é altura de entrar sangue novo no grupo. É isso que temos vindo a sentir nos últimos tempos.
A minha preocupação é, pois, passar o ramo a quem eu sinta que, mais do que gostar de Aveiro ou ser devoto de São Gonçalinho, tem um perfil que se coadune com a preservação destas tradições e desta identidade. Atualmente, vivemos tempos confusos, com tendência para deturparmos os valores que nos identificam como comunidade. Acho muito importante que o São Gonçalinho, assim como outras festas da cidade que têm vindo a revigorar-se nos últimos anos, possam ter essa atenção e carinho para que não morram nem se banalizem.

As Festas de São Gonçalinho são as festas do bairro da Beira-Mar e das suas gentes, mas a verdade é que atraem cada vez mais pessoas de fora. Acha que esta massificação pode vir a pôr em risco essa tradição e identidade?
Para que as festas façam jus às grandes expectativas que as pessoas depositam nelas, é importante que ganhem uma dimensão nacional ou até internacional. Nessa medida, é fundamental que continuem a crescer do ponto de vista do que se oferece à comunidade. Já do ponto de vista geográfico, a festa deve preservar a sua identidade de espaço. É claro que, com a dimensão que a Festa adquiriu, tivemos necessidade de começar a receber artistas de referência e foi preciso crescer para a praça do Rossio para poder alocar essa oferta cultural. Mas não nos podemos esquecer onde é o epicentro da Festa. O bairro é o segredo da Festa de São Gonçalinho, são as gentes que nos ajudam durante o ano, que alimentam a nossa devoção e nos motivam a trabalhar em prol desta causa.
A festa pode e deve crescer naquilo que é a sua oferta cultural, desde que salvaguardando os seus fatores diferenciadores: a localização das atividades, o número de faixas etárias que consegue albergar...
A Mordomia de São Gonçalinho zela pela preservação da identidade e pela transmissão das tradições às novas gerações. Num grupo desta natureza, há lugar para a inovação?
Eu diria que sim. Inovámos, por exemplo, na vertente dos produtos de merchandising, na tentativa de criar uma “moda de São Gonçalinho”. As pessoas podem andar com gorros, golas, boinas associadas ao santo. A Mordomia de São Gonçalinho já é uma marca cultural da cidade de Aveiro, daí termos querido trazer esta vertente de algum “vaidosismo”. As pessoas andam pelas ruas vestidas “à São Gonçalinho”.
No que diz respeito os eventos, temos tido algum cuidado em manter as iniciativas com um cariz já muito enraizado – o peddy papper, o Street Arts Fest, a Gala de São Gonçalinho – e trazer outros projetos. No ano passado, por exemplo, fizemos a primeira edição de um torneio de paddle.
E continua a haver margem para inovar, para criar novas ofertas, novos atrativos, sem nunca esquecer a comunidade.
Por falar em comunidade: naquela semana de janeiro, o bairro da Beira-Mar está repleto de pessoas, mas no resto do ano, fruto do envelhecimento da população e da crise da habitação, tem cada vez menos residentes de longa duração. Esta realidade tem impacto nas Festas?
Pode ter impacto para os que ainda lá estão. Temos essa experiência quando fazemos as arruadas. A nossa expectativa, tendo em conta o que fomos vendo acontecer durante largos anos, era ver as pessoas nas janelas, a abrirem as portas das suas casas, a convidarem-nos para entrar, a contribuírem com a sua notinha. Havia muito esta vivência de bairro. Hoje, são menos as portas que se abrem para nos dar apoio ou mesmo só para nos acolher com um simples “bom dia”. O contacto de proximidade com a comunidade do bairro está a começar a desaparecer. Sentimos isso nas ruas do bairro ao longo de todo o ano.
Já na vivência da festa, há sempre aqueles chavões que chamam a atenção das pessoas, como o lançamento das cavacas, os concertos, a tradição das mordomias mais recentes de almoçarem juntos na segunda-feira da festa e depois irem para a capela cantar a marcha... Mas, em termos de vivência do bairro, nota-se que falta algo, a vivência das ruelas da Beira-Mar. E isto pode ser uma responsabilidade da Mordomia, mas também é uma consequência do que está a acontecer em Aveiro e um pouco por todo o país.
Como é que a Mordomia de São Gonçalinho está estruturada?
Nos últimos anos, o número-chave de elementos da Mordomia de São Gonçalinho tem sido 21 mordomos. No nosso caso, numa primeira fase, só entraram 18 – a Mordomia anterior à nossa começou por integrar 21 mordomos, no entanto, quando chegou a altura de entregar os ramos, o grupo já estava reduzido a 18 elementos. Como manda a tradição, cada um destes escolheu e convidou um sucessor a quem entregou o seu ramo. Quanto aos três ramos restantes, foram entregues à nova Mordomia para que fossem os novos mordomos a atribuí-los, numa segunda fase, se assim o entendessem, a outros três elementos. E foi isso que aconteceu, ainda que, hoje, curiosamente, também sejamos 18 – entretanto, três mordomos abdicaram das suas funções.
Em termos de organização, temos alguns cargos internos: o juiz, Nuno Portela, a figura máxima dentro do grupo de mordomos – ainda que o responsável da Mordomia de São Gonçalinho seja o pároco da Vera Cruz, atualmente, o padre João Alves, dois secretários e dois tesoureiros. Estas cinco pessoas são a cara da Mordomia perante terceiros, ainda que, no dia a dia, sejamos todos mordomos.
O que é que implica ser mordomo?
Pessoalmente, sinto que a Festa de São Gonçalinho, face à responsabilidade e exigência que acarreta, já não se fazia só com mordomos da Beira-Mar. Por vezes, ainda se nota alguma relutância de pessoas que não percebem a dinâmica com que isto evoluiu e insistem que a Mordomia devia ser composta exclusivamente por filhos e netos do bairro.
É preciso ter uma disponibilidade muito grande para se ser mordomo. É preciso responsabilidade e um gosto genuíno pela festa, pela tradição e por aquilo que São Gonçalinho representa. No meu entender, para se ser um bom mordomo, não é necessário ser-se a pessoa mais religiosa do mundo. Eu prefiro colocar as coisas sobre outro prisma: é importante sentir uma ligação a São Gonçalinho, mas essa ligação pode ser de natureza religiosa, espiritual, afetiva... É preciso, sobretudo, um nível de compromisso para dois anos que muitas vezes nos faz abdicar de muitos momentos da nossa vida pessoa e profissional.
A partir do final de setembro, praticamente todos os fins de semana andamos pela rua, a fazer peditórios pelos mercados, pelas feiras. São três meses intensos de preparação para a Festa. Já para não falar dos eventos mensais, desde a Feira de Março – o primeiro evento das Mordomias – até ao Cortejo das Pastoras, em dezembro.