José, nome fictício, é o primeiro a chegar. Está tão imóvel que parece uma estátua. É daquelas pessoas de idade indefinível. 50, 60, 70? 56 anos, diz-me. A rua é um espaço familiar para ele – já lá viveu; agora é onde, no centro de Aveiro, passa as manhãs com uma pequena lata à sua frente, esperando que os transeuntes lá depositem algumas moedas.
Onde é que nasceu?
Em Quintãs, Oliveirinha. Mas fui criado em Ílhavo, na Obra da Criança.
[A Obra da Criança é uma valência da IPSS ilhavense Património dos Pobres destinada a acolher, em regime de internamento, crianças e jovens dos 2 aos 18 anos de idade que se encontrem em situação de risco social]
E os seus pais?
O meu pai não conheço. A minha mãe já faleceu. Eu era o mais novo dos irmãos.
Com que idade foi para a Obra da Criança?
Eu não fui, levaram-me. Foram-me buscar às Quintãs, tinha eu quatro anitos, era um garoto.
Lembra-se desse dia?
Não. Não me lembro de nada disso.
E a sua mãe?
Tinha uma casa, que já não existe. Andava a pedir de porta em porta, aqui em Aveiro. Às vezes, na altura dos Fiéis, ia para o cemitério.
Como foi estar na Obra da Criança?
Gostei de lá estar.
Esteve lá muito tempo?
15 anos. Tinha 18 anos quando saí.
O que fez quando saiu?
Sempre trabalhei.
Trabalhou onde?
Numa fábrica de móveis e nas obras. E depois consegui ir para a Junta de Freguesia.
E o que fazia na Junta?
Fazia de tudo um pouco. Coveiro, cantoneiro… Eu e o meu colega. Sempre fui uma pessoa sossegadita, mas tinha problemas de alcoolismo. Mas tive força de vontade e com ajuda de duas psicólogas consegui deixar. Correu bem. Agora não toco numa ponta de álcool. Experimentei o ano passado beber uma cerveja, para ver a reação do meu corpo. Não gosto já de cerveja e caiu mal… Nunca mais.
Alguma vez casou ou teve filhos?
Não, nunca fui casado.
Chegou a viver na rua, não foi?
Vivi na rua meio ano.
Onde?
Naquela zona entre o Continente e a Rotunda do Rato. Estive em vários sítios, numa tenda. Às vezes iam lá e mexiam-me nas coisas… Eu saturava-me e mudava de sítio. Agora não me falta nada, graças a Deus. Luto como posso. O meu passado já passou. Olhar sempre com a cabeça erguida para cima…
Como era viver na rua?
Tinha sempre o meu cantinho limpinho, fui sempre uma pessoa limpa. Ia às lavandarias públicas lavar a roupa. Mas era difícil. Nunca podia estar descansado por as pessoas andarem a mexer nas minhas coisas. Eu também estraguei a minha vida com a bebida e também andava a mexer nas coisas das pessoas. Depois voltei ao meu juízo perfeito e arrependi-me. E agora não toco. E as pessoas estão contentes comigo.
Havia muita gente a viver nas ruas?
Naquela zona era eu e outro rapazito, que depois foi para a Suíça ou para a França. Mas aqui em Aveiro há muita gente.
O senhor já não mora na rua…
Agora estou em Ílhavo. Foi a assistente social que me meteu lá. É uma casa com dois quartos de cada lado e uma cozinha ao meio, com fogão, frigorífico, uma banca para lavar a loiça… Tem tudo impecável. Vou ao Continente buscar as minhas coisas para fazer o comer. E faço a minha vida normal.
O senhor já não mora na rua, mas pede na rua…
Costumo estar em Aveiro a pedir para as pessoas me ajudarem, para comprar coisas para comer e para a medicação.
Recebe pensão, algum subsídio?
Estou a receber 480 euros. Diga-me agora: o que é hoje 480 euros? É a minha pensão. Pago o quarto, tenho tudo em dia. Não sobra quase nada para comer e a medicação. Tenho HIV…
Como contraiu o HIV?
Relações. Já tenho há 20 e tal anos.
Sente alguma vergonha por estar a pedir na rua?
Oiça: vergonha de quê, senhor? Vergonha é roubar e andar a fazer más figuras.