A escritora e conselheira de Estado Lídia Jorge trouxe, nas comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, em Lagos, uma intervenção que ecoa como um verdadeiro manifesto pelos valores da pluralidade, da memória e da responsabilidade cívica. Começou por evocar Camões, não apenas como figura do passado, mas como símbolo de uma época em transição — um homem que viveu o ocaso de um ciclo histórico e que, com “Os Lusíadas”, nos legou uma reflexão profunda sobre a glória e a decadência, os avanços e os recuos das nações. Numa fase global de incerteza, a sua epopeia permanece atual: interroga o poder, expõe a fragilidade humana e alerta para os perigos da arrogância imperial.
Com rara coragem, Lídia Jorge denunciou o poder “demente aliado ao triunfalismo tecnológico”, que transforma cidadãos em meros espectadores virtuais, seguidores de “ídolos-fantasma”. E fez um apelo urgente: resistir à digitalização que rebaixa o que deve ser exemplar, moderado e informado.
Ao recordar que “em pleno século XVII cerca de 10 % da população portuguesa tinha origem africana”, desfez com elegância e verdade a ideia de qualquer “sangue puro”. Somos fruto de encontros, misturas e histórias partilhadas — entre nativos, migrantes, escravos e seus senhores. Essa ancestralidade complexa é antídoto aos discursos de ódio e revisionismo.
Trouxe-nos Lagos como símbolo: berço de sonhos do Infante, mas também cenário de escravatura, lembrando que nenhum sucesso histórico pode ser dissociado da sua sombra. Foi, no fundo, um lembrete para que a História nos sirva de espelho, evitando que repitamos os erros do passado.
Lídia Jorge terminou com uma pergunta inadiável: num mundo em mudança, o que continuará a definir “o que é ser humano”? Uma provocação necessária, que nos desafia a defender a dignidade, a tolerância e a justiça democrática.
Infelizmente — mas sem surpresa — o discurso já foi alvo de críticas por parte daqueles que temem a liberdade de pensamento. Mais do que discordância, o que se viu foi uma tentativa de descredibilização pessoal, revestida de um moralismo oco e um nacionalismo simplista.
É preocupante quando quem se recusa a ouvir a complexidade da nossa história prefere insultar em vez de argumentar, e deturpar em vez de compreender. O desconforto que o discurso provoca não é defeito — é sinal de que tocou fundo, onde a verdade costuma incomodar.