Se há boa altura para por a leitura em dia, é precisamente a altura das férias e, por isso, gostava de vos sugerir uma ótima companhia para estas férias. Um dos livros mais emocionantes que li nos últimos meses foi a estreia de Luísa Sobral na ficção “Nem todas as árvores morrem de pé”. E, se há conclusão que podemos tirar desta leitura, é que se é para escrever um livro, nada menos do que um excelente livro. Parabéns Luísa Sobral por este livro tão bom que me faz esperar ansiosamente pelo próximo!
Que a Luísa tem um enorme talento para escrever letras de músicas não é novidade para ninguém, mas esta estreia na ficção é, de facto, notável! Todos, mesmo todos os temas abordados no livro, são tão pertinentes como atuais e fazem-nos refletir sobre questão tão distintas como o impacto que uma ditadura e as suas medidas extremas podem ter no dia-a-dia das pessoas e das suas famílias; a sobrevivência do corpo, quando a alma já desistir de viver; a dor e desilusão que é amar alguém de quem tanto desconhecemos, ao ponto de se revelar um monstro na relação que tem com as outras pessoas; e a importância do amor de uma mãe, biológica ou de outra pessoa que nos acolhe no seu coração como se fossemos seus, para o nosso pleno desenvolvimento e a importância do perdão para nos reconciliarmos com os outros e viver em paz.
O livro que hoje vos sugiro recorre a uma interessante técnica das matrioskas ou das caixas chinesas, que nos faz saltar de uma história para outra, todas ligadas entre si e com pontos comuns que tornam difícil parar a leitura. E em que altura do ano nos podemos dar ao luxo e iniciar a leitura de um livro e só terminar na última página? As férias, são, de facto, a única altura em que temos o privilégio de ler um livro sem ter que parar...
Neste livro vamos conhecer as vidas de duas irmãs que viveram uma infância, adolescência e juventude sempre juntas e com uma cumplicidade que parecia impossível de quebrar até ao dia em que se ergueu o muro de Berlim e, acaso do destino, cada uma ficou num dos lados do muro. A protagonista da nossa história ficou com o marido, que pertence ao aparelho do partido, enquanto a outra irmã ficou com a mãe do outro lado da Alemanha, onde construiu a sua vida e onde viveu até ao reencontro com a sobrinha. Através da vida das irmãs conseguimos perceber o impacto que estes 50 anos negros da história da Alemanha tiveram na vida de tantas pessoas e de tantas famílias que, por motivos completamente alheios à sua vontade, foram forçados a viver vidas separadas. Olhar para os regimes políticos e para a importância das decisões de um governo na vida das pessoas e suas famílias é uma forma muito interessante para compreender o quanto as decisões políticas podem impactar a vida dos cidadãos.
A história principal centra-se na vida de Emmi, a irmã que ficou a viver com Misha na RDA e que, aos poucos, se vai apercebendo que o homem por quem se apaixonou perdidamente, o pai da sua filha, é um verdadeiro monstro e capaz dos atos mais cruéis e hediondos. Quando se desilude no amor, Emmi sobrevive na desilusão e no desapontamento que é deixar aos poucos de se encantar com a beleza da vida e desistir do amor, do marido e até da própria filha para quem passa a ser uma figura de existência ausente, tornando-se uma sobrevivente da tristeza e desilusão e refugiando-se no quarto, longe dos afetos, da vida e da alegria.
Não consigo pensar melhor descrição para aquilo que possa ser o estado de espírito daqueles que, continuando vivos, desistem de viver: “Não há nada mais triste do que um sorriso que não se segura sozinho”. Que expressão tão forte e tão realista!
Mas Emmi não foi a única pessoa a conhecer o verdadeiro lado do seu marido, também a filha M., que acaba por ser criada por uma ama com paixão pelas plantas, por um pai que idolatra e de quem se torna a sua sombra e por uma mãe em profunda depressão, acaba por, já na juventude, descobrir quem é o verdadeiramente o seu pai e essa dor é ainda maior do que a dor de crescer com uma mãe ausente. “O meu pai foi um homem bom até eu descobrir que não o era.”
Ao ler este livro somos, de facto, levados a refletir sobre a dor e o sentimento de vazio das pessoas que sobrevivem sem nada que as agarre à vida, dos efeitos de uma depressão, no próprio e nos outros, e também sobre o desencanto que é, viver sem esperança e sem a capacidade de nos encantarmos com a vida. “Há quem desperdice toda uma vida enquanto pensa o que fazer com ela.” E é aqui que a autora nos fala da importância das pequenas coisas, dos momentos de felicidade mais simples e capazes de trazer um bocadinho de alegria e leveza à vida, como acontece com a música e a dança. “O mundo parecia estar lentamente a desmoronar-se, mas enquanto eu dançava tudo continuava bonito e harmonioso. Nesses momentos as piruetas levavam-me para um lugar sem tristeza nem ansiedade. É estranho como se pode sentir paz em tempos de guerra”. A arte tem sempre este papel de, mesmo que não nos cure, nos trazer momentos de felicidade no meio da doença.
Crescemos a acreditar, ou a tentar acreditar, que o segredo da felicidade reside na forma como encaramos a vida, mas não podemos ignorar que a felicidade não depende apenas do nosso olhar, depende também, e muito, do contexto familiar e social e do impacto que têm na nossa vida. De facto, não podemos alhearmos das adversidades que, embora sejam um motor para a nossa resiliência, quando se revelam intransponíveis, vão matando aos poucos a nossa capacidade de lutar, a nossa alegria, esperança no futuro e minando as nossas relações com os outros e a prova disso é que, mesmo duas pessoas, nascidas no seio da mesma família e com educações semelhantes, podem ter um destino tão diferente moldado pelas circunstâncias da sua vida. “A minha tia era parecida com a minha mãe, mas feliz. Ao vê-la, desenvolvi a teoria de que quem teve uma vida triste e preocupada tem mais rugas do nariz para cima. Quem pelo contrário teve uma vida feliz. Tem mais rugas do nariz para baixo. Eram as rugas que as distinguiam. A boca da minha mãe não sorriu durante anos, e os olhos, só os conheci inchados, sempre a meio caminho entre o fim de um choro e o início do próximo.”
De facto, pouco existe de pior do que a sensação de desesperança, olhar para o futuro sem acreditar que ele é real é um sentimento que não deixa espaço para qualquer alegria e toma conta de nós e da nossa vida. “A desilusão, quando grande, é um sentimento cuspido pelo corpo inteiro. Da ponta dos dedos ao cabelo, com a maior ambição de chegar ao teto. Todo o corpo se desilude ao mesmo tempo, como os praticantes de natação sincronizada.”
Apesar de a história da protagonista ter como pano de fundo um momento histórico passado, a verdade é que o que com ele podemos aprender face ao momento que vivemos hoje é mais uma boa razão para ler este livro. A história, e as histórias de vida que com esta se cruzam, ensina-nos sempre mais do que a teoria e perceber, pela história de vida destas famílias, a importância (negativa) que a desinformação e a manipulação das verdades têm na construção da opinião pública, é uma lição que não pode ser desaproveitada sobretudo numa altura em que a desinformação parece ter tomado conta das nossas vidas. “Nada do que aqui dizem do Ocidente é verdade. Fomos manipulados desde crianças para acreditar que somos superiores ao resto do mundo, mas, se isto fosse assim tão maravilhoso, porque teriam construído um muro para não nos deixar sair? Hã? Para nos proteger, achas? Essa pergunta nunca te passou pela cabeça? Ou escolhes ser um carneiro porque é mais fácil do que aceitar que estas merdas te destruíram a vida?”
Sendo eu uma defensora da liberdade e do seu bom uso, considero que nunca perde atualidade e sentido compreender, ainda que pelos olhos de outros, que a liberdade, em todas as suas formas, e a importância que ela tem para as nossas vidas, é um tema que nunca fica ultrapassado. Naturalmente que não devíamos precisar de refletir tanto sobre a liberdade, pois, se esta estivesse garantida, esta reflexão não seria necessária. Mas como isso não é, infelizmente, um dado adquirido, que este livro seja também uma oportunidade para compreender que a vida só é plena quando vivida em liberdade. “Só é verdadeiramente livre aquele que não pensa na liberdade, o que a vive.”
Infelizmente, a História tem demostrado, por mais do que um momento, que nem todos nascem e vivem felizes e que tão ou mais importante como nascer em liberdade é saber como se vive em liberdade e conseguir mantê-la. “Para quem nunca foi livre é difícil sentir-se livre. A liberdade não se traga de uma só vez, é como aqueles comprimidos grandes que dividimos em dois com medo de que não passem na garganta. A liberdade não se traduz no corpo como a alegria ou a tristeza. (...) É na extinção do medo que ela se revela.”