A Estação Internacional Espacial anda a fazer órbitas por cima das nossas cabeças e há um brilho que, cá de baixo, afundados a 400 km de distância, podemos acompanhar se levantarmos o olhar para o céu. Num filme, a personagem principal segue, no seu computador, a viagem deste prodígio tecnológico, que nos sobrevoa a 27 mil km/h através do firmamento. Por alguma razão lembro-me dessa cena no mais improvável dos sítios - aqui na Lomba. Também deste lugar remoto é possível, se pusermos os olhos acima das coisas terrenas, observar a máquina voadora em trânsito pelo infinito celeste.
Mas nesta era de ultramodernidade há sítios onde tudo é mais arcaico e rudimentar. A Lomba, pequena aldeia de Vale de Cambra empoleirada no topo de um monte, é um desses lugares de despojamento tecnológico que nos curam da vertigem citadina.
Restam uns 40 habitantes. O senhor Tavares é um dos resistentes. Passamos por ele à vinda da cascata da Porqueira, a caminho do carro. Sobe uma ladeira de enxada na mão, que vai amparando os seus passos. De boina na cabeça e camisa aberta quase até ao umbigo, vai-nos contando episódios da sua vida enquanto nos conduz vagarosamente, com a energia já gasta dos 79, até ao único café da aldeia, o Gruta da Lomba.
Acede-se ao seu interior através de uma passagem em túnel cujas paredes estão revestidas por um forro verde formado por várias plantas entrelaçadas. O café está tão na penumbra como uma caverna. Num azulejo junto ao balcão lê-se "mais vale um borracho conhecido do que um alcoólico anónimo". Um cão do tamanho de um porta-chaves ladra com um fôlego interminável e com a ferocidade possível para um bicho que pesa menos que uma almofada. Mete tanto medo como uma borboleta por isso bebemos as coca-colas tranquilamente contemplando, a partir de uma varanda sobre a serra, os montes e as tiras que pendem do teto com dezenas de moscas coladas, sucumbidas àquela armadilha letal.
Está calor, 30 e tal graus. Um grupo de moradores, quase todos velhos com exceção de uma mulher de 38, está sentado na sombra projetada por uma das primeiras casas da aldeia. A sombra, infalível técnica de refrigeração, será também proporcionada por um grande guarda-chuva encostado a uma parede. As mulheres são mais tagarelas. Os homens mantêm a cabeça baixa e comunicam com frases curtas. Pergunto a idade a uma velha vestida de preto. 75, diz. Conta-nos que antes transportava leite pelas aldeias da serra, percorrendo a pé os caminhos dos pastores. "Era assim a vida", comenta. Depois faço a pergunta errada: que idade acham que eu tenho? Uma mulher observa-me durante cinco segundos, olha-me de cima a baixo, avalia-me como um médico a um doente e finalmente atira com a certeza de um diagnóstico incontestável: 60. O meu amigo não contém uma gargalhada. Sinto um baque no coração. O meu ego ganha a consistência da papa Nestum. Tenho 49.
Se Portugal fosse um móvel, muitas das suas gavetas estariam vazias. A Lomba é uma dessas gavetas. Já não resta quase nada lá dentro. Da segunda vez que a visito, com os meus filhos, volto ao café. A dona diz que a moradora mais velha tem 102 e que já não há crianças e jovens. Só com o regresso dos emigrantes no Verão é que a pequena comunidade cresce e rejuvenesce um pouco.
Este esvaziamento é antigo e impiedoso. Aqui, nesta zona serrana na fronteira com Viseu, há velhas aldeias que apenas conservam paredes em ruína. As construções não têm portas, janelas ou tectos e foram invadidas por silvas e outra vegetação. Estes antigos povoados estão tão embrenhados na floresta, tão longe de tudo, tão inacessíveis, que é difícil, aos nossos olhos de hoje, imaginar alguém a viver aqui.

Por trilhos estreitos e acidentados a partir da Lomba é possível atingir duas dessas aldeias abandonadas, as Porqueiras e as Berlengas, a uns 20 minutos a pé. Tomamos banho na cascata das Porqueiras, um pequeno paraíso de água, pedra, vegetação e silêncio. O senhor Tavares diz que por vezes desce à cascata para lavar a ferrugem. O mundo, penso para comigo, devia fazer o mesmo.
Na verdade, a visita à Lomba nasce de um projeto falhado. A ideia original é fazer o percurso Vereda dos Pastores a partir do Côvo, a aldeia mais alta de Vale de Cambra, na encosta sul da Serra da Freita. Para lá chegar penetramos numa pequena aldeia de ruas tão estreitas que, a dado passo, o carro quase fica encravado entre as paredes de duas casas. Não cabe nem um fio de cabelo. Habituados à largueza das ruas citadinas, conduzir nas ruas das aldeias serranas é como conduzir no corredor de uma casa.
O meu amigo e eu, porém, não medimos bem a dificuldade deste PR3 - 7,5 quilómetros parece um passeio no parque, mas esta é uma distância traiçoeira. O traçado sinuoso, os desníveis, o piso de pedra e cascalho e a falta de sombra fazem o nosso avanço ser lento e penoso. Desistir de um empreendimento é sinal de humildade e inteligência quando ele se torna torturante, mas é também como infligir uma ferida na carne do nosso orgulho.
À mesa do restaurante Mira Freita, onde almoçamos, engolimos um bife e o orgulho e decidimo-nos por um objetivo mais modesto: as Porqueiras. Engendramos o plano enquanto comemos. Depois atravessamos a rua para o café em frente, onde compro mirtilos e onde um grupo de homens joga às cartas numa mesa a um canto. Conduzimos então até à Lomba e daqui caminhamos até às Porqueiras, antes das coca-colas na Gruta. Gravado à entrada, numa ardósia, está um número de telefone, que aponto.
É para esse número que ligo uns dias depois, quando decido voltar com os meus filhos. Sou surpreendido pelo “Dancing in the dark” enquanto a chamada não é atendida. Pergunto a um homem do outro lado se podemos almoçar no dia seguinte e ele diz que sim. Entre frango, barrigas, costeletas e coelho, escolhemos as barrigas. E cá estamos. Um casal de velhos partilha uma mesa. Estão tão imóveis que parecem figuras de cera. Mas movem-se, afinal. Não são meros figurantes ali encastrados para encher o espaço. A mulher maneja um mata-moscas de plástico sempre que um inseto vem perturbar o seu sono acordado. O homem faz pequenos gestos mecânicos: mudar o braço de lugar, girar o pescoço quando alguém entra. A cadela, que se chama Fofa, continua irrequieta. Almoçamos por 18 euros, na varanda, protegidos do calor por um telhado de zinco.