Foi também em 2020, em plena pandemia, que começou a criar os seus primeiros trabalhos. O confinamento obrigou a recuar, mas também abriu portas à experimentação. De um exercício criativo no FAICC nasceu a vontade de desenvolver um solo, apoiado pelo AgitLAB, em Águeda. A experiência foi solitária, sem os apoios ou colaborações que, mais tarde, conheceria, mas deixou-lhe “uma sementinha de criadora” que germinou em pelas subsequentes, numa cadência de quase uma por ano. Entre essas primeiras experiências destacou-se o vídeo “como uma mulher”, onde já abordava o tema do trabalho doméstico invisível. Esse pequeno exercício, nascido no isolamento da pandemia, viria a ser o embrião do espetáculo que agora estreia em Aveiro.
Neste “nome de solteira”, que apresentará, em primeira mão, no Teatro Aveirense, Gisela parte de uma memória íntima – uma conversa longa com a mãe sobre o trabalho doméstico e a forma como, geração após geração, as mulheres lidaram com a carga invisível de tarefas não remuneradas. “Acho que foi essa conversa que norteou toda a peça e que ainda hoje norteia”, afirma, admitindo que a presença da mãe na estreia dará à obra uma ressonância ainda mais íntima.
O resultado, porém, ultrapassa a esfera pessoal e transforma-se num retrato social e histórico, onde a música de Mozart e a voz de Amália surgem como metáforas contrastantes: entre a leveza aparente e o peso das expectativas, entre a ironia e a herança cultural da identidade feminina criada no Estado Novo. A música funciona como comentário irónico e contraste dramatúrgico, abrindo leituras múltiplas sobre o papel da mulher ao longo do tempo.
“Para mim, apresentar este trabalho na região onde cresci, a poucos quilómetros da minha terra-natal, é mesmo muito emocionante”, confessa, recordando as viagens de comboio para Aveiro, os espetáculos que assistia no Teatro Aveirense como estudante e as primeiras descobertas artísticas que moldaram a sua visão do mundo. Agora, será ela a ocupar aquele palco, não como espectadora, mas como criadora.
Quanto ao futuro, Gisela Ferreira não tem dúvidas: “no contexto político em que estamos, o mais importante é continuar a sonhar com isto, a acreditar que é possível viver da arte”. Se possível, gostaria de dirigir peças para outros intérpretes. Até agora, todas as suas criações a incluíram em palco, acumulando funções de bailarina e coreógrafa. Mas a vontade de dirigir à distância cresce. Sem pressa de definir a próxima peça, reconhece, ainda assim, que a arte é um destino incontornável: “A arte escolhe-nos, não somos nós que escolhemos a arte”.
No dia 11, quando as luzes se acenderem, no Teatro Aveirense, para, através da dança, Gisela Ferreira partilhar com o público uma reflexão íntima e coletiva sobre o que significa ser mulher, filha e artista em Portugal, Águeda e Aveiro estarão de novo presentes – não como lugares de partida, mas como raízes vivas de um percurso artístico em plena afirmação.
