Chegam à hora marcada, com a alegria própria de quem está a prestes a iniciar uma tarefa prazerosa. Cumprimentam-se de forma efusiva, tanto que ninguém diria que, umas semanas antes, os seus caminhos raramente se haviam cruzado. Partilhavam o mesmo local de residência e pouco mais. Agora, estão prestes a partilhar o mesmo palco, as mesmas palmas e a mesma sensação de glória. São cidadãos comuns como tantos outros, mas aos quais o encenador Leandro Ribeiro lançou o desafio de integrarem o elenco de Chuva Pasmada, espectáculo que tem por base a história contada por Mia Couto. A estreia acontece esta sexta-feira, 12 de setembro, mas a criação ainda tem muita estrada para andar. O objetivo passa por apresentá-la noutros palcos da região, e não só, e com o envolvimento de outras comunidades.
“A Câmara Municipal desafiou-me para fazer um trabalho em que o público alvo fosse a população sénior e deu-me carta branca para escolher a temática”, introduz Leandro Ribeiro, em conversa com a Aveiro Mag. Como conhecia bem o texto do livro A Chuva Pasmada, não teve grandes dúvidas. “É um texto que fala também do querer morrer, de chegarmos àquele estágio em que já faz sentido partirmos, de uma família de cinco elementos que está desestruturada e com um conflito de gerações. Achei que o público sénior se fosse identificar com toda esta temática”, argumenta, poucos minutos antes de dar início ao ensaio, no palco do Centro de Arte de Ovar.
Escolhido o texto, começou a adaptá-lo a teatro e decidiu incluir uma banda sonora tocada ao piano, ao vivo, pelo Hélder Bruno Martins. “Nunca trabalhei com ele, mas conhecia o trabalho dele e convidei-o. A resposta foi prontamente positiva”, conta o encenador natural de Ovar e que tem já uma vasta experiência nesta vertente de trabalho junto das comunidades – ainda recentemente liderou a produção “A Nossa Aldeia”, baseada na opereta de Egas Moniz.
“Gosto muito de trabalhar com a comunidade. Isto desafia-me, porque temos sempre muito pouco tempo, temos todos os conflitos pessoais e internos da comunidade, mas eles também estão muito prontos, estão sempre muito disponíveis e isso ajuda”, destaca. Em Chuva Pasmada, coloca 17 elementos da comunidade local em palco, juntamente com cinco atores profissionais.
Todos juntos, dão corpo e alma a um espetáculo que tem tudo para deixar Mia Couto feliz. “Tenho a certeza. Estamos a tentar respeitar a 90% o que ele escreveu, embora adaptando a teatro, e estamos a criar tensão nos momentos fortes que, na minha opinião, ele também gostaria de que acontecesse. E depois esta situação da identidade local acho que também diz muito a Mia Couto. Ele iria perceber esta questão de serem locais a fazer este trabalho”, vinca o encenador.
A mesma convicção tem Joaquim Margarido, ovarense que, pela primeira vez, aos 64 anos, veste a pele de ator. Ainda que esteja bastante acostumado a consumir cultura, e a escrever sobre ela no seu blogue pessoal – que vai buscar o nome a um soneto de Luís de Camões (Erros meus, Má fortuna, Amor ardente) – nunca tinha estado tão envolvido numa criação artística. “Mia Couto é daqueles escritores que, pela magia com que trata as palavras, mais me encanta. ‘A Chuva Pasmada’ é um exercício de magia literária absolutamente divinal. Eu não via, mas de jeito nenhum, este texto a ser transposto para teatro. Portanto, a minha primeira emoção à volta da Chuva Pasmada é a forma como o Leandro trabalhou o texto”, enaltece Margarido.
Gabriela Silva, de 53 anos, é outra das estreantes nestas andanças. “Tem sido uma experiência muito enriquecedora. Da comunidade, eu só conhecia duas ou três pessoas e dos cinco atores não conhecia nenhum, e estou a achar muito interessante a partilha de experiências e de conhecimento. Parecemos já uma grande família”, avaliava.