Em dezembro de 2018, a HTC afirmava ter descoberto um nicho de mercado que poderia finalmente catapultar as tecnologias de realidade virtual para o estrelato, despertando o interesse de milhões de utilizadores por todo o mundo. Para a gigante tecnológica de Taiwan, uma das empresas líderes a nível mundial no que à realidade virtual diz respeito, o futuro desta indústria passaria nada mais, nada menos do que pelos utilizadores cristãos. Depois da impressão da bíblia ter inaugurado a prensa de Gutenberg, do aparecimento de programas de rádio ou televisão de inspiração religiosa ou do advento do rock cristão na segunda metade do século XX, a longa tradição cristã de adaptação aos novos meios tecnológicos como forma de cativar fiéis seguiria o caminho da realidade virtual, acreditava a HTC.
Este novo conceito de VR Church (cerimónias religiosas em realidade virtual) inspirou o jovem realizador Gonçalo L. Almeida na conceção da curta-metragem de ficção científica O Reino do Espírito. O filme, cujo trailer acaba de ser lançado, deverá estrear em festivais de cinema nacionais e internacionais ainda este ano.
“É um filme sobre uma senhora idosa e isolada que se envolve num culto em realidade virtual liderado por um padre jovem e carismático”, conta Gonçalo, em entrevista à Aveiro Mag.
Apesar de ter sido filmada no verão de 2019, muito antes de se antecipar a realidade dramática a que o mundo viria a estar sujeito meses mais tarde, a verdade é que as atuais circunstâncias impostas pela pandemia imprimem a esta curta toda uma nova dimensão, simbolismo e atualidade.
Em O Reino do Espírito, “as personagens estão isoladas em casa, não interagem, estão alienadas do mundo. É particularmente interessante perceber como o filme se associa com o presente e como é que as vivências ficcionadas daquelas personagens se comparam à realidade que a pandemia veio trazer”, afirma Gonçalo. “Uma imagem de um idoso sozinho num lar, com frascos de álcool-gel na parede e óculos de realidade virtual na cara ganha todo outro significado nos dias que correm”, acrescenta.
Para este projeto, Gonçalo trabalhou de perto com a comunidade Maior Idade do município de Ílhavo, um grupo de seniores que, nos últimos anos, tem vindo a desenvolver várias atividades culturais, cívicas e desportivas, bem como a participar em projetos artísticos e de apresentação dramática. Curiosamente, um dos “atores” do elenco de O Reino do Espírito acabou por ser o avô de Gonçalo, que integra aquele grupo.
Gonçalo L. Almeida, 23 anos, cresceu na praia da Barra, na Gafanha da Nazaré.
Não se lembra do primeiro filme que viu e nunca foi aquele adolescente que anda de câmara fotográfica ao ombro, pronto a captar todas as ocasiões. Gostava de experimentar enquadramentos, jogos de luz e tonalidades de cor e “quando tinha uma tarde livre, costumava ir dar uma volta e fazer algumas fotos”, partilha. Todavia, não fossem as conversas que partilhava com um amigo sobre os filmes que iam recomendando um ao outro e os primeiros passos de Gonçalo no caminho que o levaria a apaixonar-se pela sétima arte teriam sido solitários. Naquela altura, o jovem era reconhecido entre os pares pela sua paixão pela música e pelo evidente talento para a guitarra.A princípio, as duas paixões foram coexistindo, mas à medida que os anos passavam o cinema foi conquistando um lugar cada vez mais preponderante na vida de Gonçalo. Tanto que, findo o ensino secundário, “a hipótese de seguir um curso ligado ao cinema pareceu-me a que me faria mais feliz”, recorda. Assim foi. Seguiu cinema e audiovisual na ESAP – Escola Superior Artística do Porto.
Dos anos de licenciatura, ficaram “as aprendizagens e as pessoas” que conheceu, colegas com quem partilhou interesses, conversas, projetos e que, na sua opinião, o enriqueceram. Dos professores, destaca José Miguel Moreira, cuja “maneira de pensar o cinema era completamente diferente”.
Com o passar do tempo e o desenvolvimento do gosto pelo cinema, a música passou a ocupar um lugar diferente. “Ouvir música estimula-me a imaginar as imagens”, afirma Gonçalo que já conta com a realização de dois videoclipes no currículo.
O primeiro foi para o tema Desert, dos Cosmic Mass, banda com quem já havia colaborado no decorrer do curso. Um trabalho experimental, sem orçamento, rodado entre amigos nas dunas da praia da Barra. “Não se pode dizer que tenha havido argumento. Tinha algumas ideias soltas, a música como referência e um fio narrativo, mas foi um processo de absoluta experimentação”, admite o jovem.
Também com o videoclipe de Something Wicked Stands Behind Me, dos Omie Wise, a iniciativa partiu de Gonçalo que, logo após um concerto no Mercado Negro, em Aveiro, apresentou a sua proposta à banda.No entanto, o que Desert teve de acaso e improviso, este teve de método e critério. “ implicou uma escrita cuidada, o desenvolvimento de storyboards, um casting ponderado e filmagens planeadas de maneira a poderem acontecer num só dia”, relata Gonçalo.O resultado final é um conto de fadas escuro e febril, que vai buscar referências a Jung e Freud e funciona como uma espécie de filme-resumo do conceito que a banda criou para aquele álbum.
Gonçalo cumpriu o seu estágio curricular com o realizador portuense Joaquim Pavão, na rodagem do filme Sculp_Sonhos, em Santo Tirso. Tratou-se, nas palavras de Gonçalo, de “uma experiência fantástica, muito intensa”, bem como “uma oportunidade de aprendizagem incrível”, nomeadamente no concerne à iluminação de uma cena, ao trabalho de câmara, técnicas para alcançar determinada estética e direção de atores.
Neste momento, a par de O Reino do Espírito, Gonçalo tem outro trabalho em fase de pós-produção, quase pronto a ser apresentado. Chama-se Musgo e é uma docuficção (isto é, concilia os géneros documental e ficcional) sobre a cultura, tradições e crenças transmontanas e os festejos da sexta-feira 13, “uma história fragmentada que funciona como representação sensorial do ciclo de vida barrosão” e que se inspira na obra do padre António Fontes.O filme começou por ser o projeto final de Gonçalo e Alexandra Guimarães (corealizadora e produtora) à disciplina de documentário na ESAP, mas rapidamente ficou claro aos olhos de ambos que a ideia era ambiciosa demais para um trabalho académico. Felizmente, em boa hora decidiram contactar a câmara municipal de Montalegre e o Ecomuseu do Barroso que acabaram por apoiar o projeto, viabilizando-o financeiramente.
Tecnologia e tradição e, principalmente, a forma como se confrontam entre si, têm sido temas assíduos na obra de Gonçalo L. Almeida. Exemplo disso é “Cavaca”, a primeira curta-metragem realizada por Gonçalo, que também assina o argumento e as responsabilidades de produção.
“Cavaca” passa-se em ambiente de festa de São Gonçalinho, em Aveiro, e é inspirada na história real de uma familiar de Gonçalo que ter-se-á perdido, com a neta, no labiríntico bairro da Beira-mar. Desconfiada da saúde da avó, a menina não tardou a alertar a mãe através de um tablet, o que, por momentos, terá gerado grande preocupação na família. A sénior esteve sempre saudável, mas a perceção da neta acabou por causar aflição a muita gente.“Como é que, de um momento para outro, pode questionar-se tão facilmente a sanidade de uma pessoa?”, ter-se-á espantado o jovem cineasta quando lhe contaram aquele episódio. Por outro lado, conta, “interessou-me a ideia de que, enquanto a avó está focada em encontrar o caminho, a neta está de tablet em riste a transmitir todas aquelas interpretações erradas do que está a acontecer”. Por outro, “a influência que a tecnologia acaba por ter no desenrolar dos acontecimentos cativou-me”, explica.A situação original passou-se, de facto, no contexto da festa de São Gonçalinho e fazia todo o sentido que a curta fosse gravada no mesmo ambiente. Além disso, “a ideia de a avó levar com uma cavaca na cabeça e depois disso poder ficar, aos olhos da neta, desorientada, era uma forma de motivar os acontecimentos. As festas de São Gonçalinho eram a solução ideal”.
Com o tempo, esta curta acabaria por “ficar na gaveta”. Ainda assim, continua a ser “um projeto de muito boa memória” para Gonçalo.
Para Gonçalo L. Almeida, a praia da Barra é raiz, berço, memória e afeto. Foi lá que cresceu, sob a luz alta e vigilante do farol, e é lá que continua a ter o “privilégio” de viver. No entanto, não é naquela península de areia entre a ria e o mar que o jovem mais facilmente encontra inspiração e criatividade.
“Há muita gente no meio do cinema que defende que devemos ‘escrever sobre o que conhecemos’. É uma excelente máxima. Por norma, é explorando as aquilo que nos é mais próximo que conseguimos mostrar algo mais verdadeiro e emocionalmente mais estimulante. Mas eu nunca senti isso. O que mais me inspira é a estranheza”, contraria Gonçalo.
Esta insaciável sede pela exploração da novidade, a necessidade de uma descoberta constante das sinuosidades do agora e o espírito acolhedor para o que é diferente marcam a postura deste realizador em início de carreira como, de certa forma, no seu entender, terão marcado o percurso do seu realizador de eleição: David Cronenberg.
“Se eu pudesse ser qualquer realizador que já existiu, provavelmente, escolhia o David Cronenberg. A forma dele pensar, escrever, construir as imagens e as histórias é completamente fora da caixa. Fez sempre questão de trabalhar temas muito contemporâneos, matérias que só viriam a desenvolver-se anos mais tarde e que, hoje, conseguem ser ainda são mais pertinentes”, relata Gonçalo, sobre o cineasta canadiano autor de A Mosca (1986), Dead Ringers/Irmãos Inseparáveis (1988) ou Crash (1996).
“Também eu quero fazer filmes sobre os temas que influenciam a vida no presente, as novas realidades às quais ainda não nos habituámos e com as quais ainda estamos a aprender a lidar”, reitera.
Em setembro de 2020, Gonçalo esteve na Bienal de Veneza, o festival de cinema mais antigo do mundo e um dos mais importantes no universo da sétima arte. Numa candidatura apresentada através do Cinema Trindade, no Porto, o português foi escolhido para integrar um grupo de 27 jovens cinéfilos europeus – cada um, em representação de um estado-membro – que compôs o júri da Giornate degli Autori, uma iniciativa paralela à bienal que premeia longas metragens de realizadores em início de carreira.
“É uma forma de envolver jovens europeus que partilham esta paixão pelo cinema e torná-los embaixadores do cinema europeu nos seus países”, explica Gonçalo. “O facto de sermos de 27 países diferentes, mas termos interesses semelhantes, permite que se gere um ambiente entusiasmante”. Gonçalo destaca ainda a oportunidade de conviver naqueles dias com Nadav Lapid, realizador israelita vencedor do Urso de Ouro do Festival de Cinema de Berlim, em 2019, e presidente do júri que o português integrava.
Gonçalo sublinha que o cinema português é reconhecido internacionalmente pela sua componente técnica e artística, mas admite que o público convencional, habituado ao método hollywoodesco do cinema americano, não reconhece essas vertentes. “Se um filme não for cativante, acaba por ser posto de lado”, reconhece Gonçalo.
“Regra geral, os portugueses têm o preconceito de que o cinema português é uma seca. E, exagerando, os poucos que vão ao cinema ver filmes portugueses, acabam muitas vezes por confirmar essa ideia”.
Gonçalo L. Almeida acabou de concluir o curso e está consciente do quão difícil é trabalhar em cinema em Portugal. No entanto, acredita que é possível uma solução de equilíbrio que não comprometa a componente artística, mas chegue aos públicos. Essa é, nas palavras de Gonçalo, a “million dollar idea”: conseguir fazer algo que seja bom, que seja inteligente, que tenha algo a contar e que, ainda assim, cative. “É um dos meus grandes objetivos: fazer filmes que possam ter o mesmo valor artístico e o mesmo nível de conteúdo que muitos filmes do cinema português têm, mas que interesse as pessoas”, reitera.