Filipa Matias Magalhães*
A guerra iniciada pelo Primeiro-Ministro Russo Vladimir Putin à Ucrânia e as imagens de horror que chegam até nós diariamente, não me saem da cabeça desde o dia 24 de fevereiro e, desde então, foram muitas as vezes que me lembrei de um dos mais importantes testemunhos que li sobre o Holocausto: “Se isto é um homem”, de Primo Levi e, por isso, a escolha do livro para esta semana não poderia ter sido outra.
Tendo a acreditar, de uma forma um tanto ingénua, que a inteligência do Homem lhe permite aprender com a História e retirar dela as lições certas para construir uma sociedade melhor. Infelizmente, são vários os exemplos diários que nos mostram que isso não é uma verdade universal. E não o é, nuns casos por desconhecimento, noutros porque algumas pessoas teimam em não retirar da História as lições certas ou ainda, e acredito que isso acontecerá muitas vezes, porque a História não nos marcou o suficiente ao ponto de lutarmos para não cair nos mesmos erros.
Há quem diga que só aprendemos com os nossos erros ou quando as historias e os erros dos outros nos tocam de tal forma que deixam marcas fortes na nossa personalidade e este é um testemunho brutal dos horrores causados pelas decisões dos protagonistas principais da II Guerra Mundial. É, por isso, um dos melhores livros que conheço para nos fazer refletir e impossibilitar de esquecer as aprendizagens que devem resultar dos erros do passado e defender de forma inabalável os valores que a história demonstrou serem os certos numa perspetiva de uma sociedade mais justa e em paz.
De facto, embora seja verdade que a história e os livros nos dão lições preciosas que nem todos aproveitam, não é menos verdade que, por vezes, olhamos para eles com o distanciamento e a sensação de segurança que o tempo, a distância e a barreira física dos meios de comunicação criam. Por isso vos desafio a ler este livro porque ninguém vai ficar indiferente à sua mensagem, como era, aliás, um dos propósitos do autor que nos quis deixar um testemunho e um relato sobre os horrores da Guerra.
É impossível ficarmos indiferentes à mensagem deste livro, fantástico pelo realismo e objetividade das descrições feitas na primeira pessoa, e humano e presente nos seus relatos e descrições onde os objetos mais simples assumem uma enorme importância que nos faz sentir a viver dentro do Lager (campo de concentração) e a sofrer com os seus prisioneiros.
Também é possível olhar para este livro numa perspetiva sociológica em que o autor, partindo dos relatos do dia-a-dia e das rotinas mais simples e cruéis do campo de concentração nos desafia a uma profunda reflexão sobre o que carateriza e define o Homem na sua essência. Quando tudo aquilo que julgávamos essencial nos é retirado, o que resta e o que define o homem? “chegámos ao fundo. Mais para baixo do que isto não se pode ir; não há nem se pode imaginar condição humana mais miserável”. Esta interpelação constante à reflexão sobre a condição humana, que acompanha as descrições mais inumanas que se possam imaginar, é feita de forma veemente e assertiva e, por isso, se é verdade que é um livro muito duro (acredito que a realidade sê-lo-á sido ainda mais), não é menos verdade que nos desafia a pensar na finalidade e no sentido e valores fundamentais de cada um de nós individualmente e no coletivo e a refletir sobre a extensão da maldade humana, numa tentativa de a compreender. A esperança, essa está sempre presente na mensagem de que, até mesmo nas condições mais adversas, o ser humano é capaz de bondade.
E, no fundo, na Segunda Guerra Mundial, tal como agora, na Ucrânia, o que verdadeiramente importa, e há a lamentar, são as consequências que tantos seres humanos sofrem em resultado das decisões daqueles que, sem problemas de consciência, decidem “da sua vida ou da sua morte para além de qualquer sentido de afinidade humana; no caso mais otimista, na base de uma mera avaliação de utilidade.”
Este livro leva-nos para dentro das celas do Lager e relata com grande exatidão os momentos do quotidiano dos prisioneiros, a luta diária pela sobrevivência e a solidariedade que se gera entre alguns. É um relato do que somos quanto tudo nos é tirado, mas também um relato maravilhoso de como a essência não muda… nem mesmo nas mais duras condições de vida, “por isso, conforme os seus caracteres, entre nós uns convenceram-se imediatamente de que tudo está perdido, que aqui não é possível viver e que o fim é inevitável e próximo; outros convenceram-se de que, apesar da extrema dureza de vida que nos espera, a salvação é provável e não está longe e, se tivermos fé e força, voltaremos a ver as nossas casas e as pessoas amadas”. Primo Lévi pertencia a estes últimos, sobreviveu a Auschwitz, mas não às marcas que Auschwitz deixou nele…
Primo Levi foi um judeu que resistiu à ocupação nazi até ser preso, com apenas 24 anos, e enviado para Auschwitz em fevereiro de 1944. Aí esteve aproximadamente 12 meses, até janeiro de 1945, altura em que foi libertado pelo Exército Vermelho que o deixou para trás por considerar que não seria capaz de sobreviver. A sua vida no Lager é pautada por algumas singularidades, começando desde logo pelo tempo que aguentou preso - quase 12 meses quando, em média, os outros prisioneiros não aguentavam muito mais do que 3 meses; tendo ainda a particularidade de ter encontrado na escrita e no desejo de deixar um testemunho fiel do que viveu para as gerações futuras, força para sobreviver às condições de vida mais inumanas que se possam imaginar, “neste lugar também se pode sobreviver para contar, para testemunhar.”
A história, quando contada na primeira pessoa, torna-se muito mais humana e real e Primo Levi utiliza uma narrativa simples e fluida, embora objetiva e realista – sendo licenciado em química a sua objetividade é compreensível – que nos faz mergulhar nestes acontecimentos, não permitindo qualquer atitude de apatia e distanciamento. É inevitável sofrermos com Primo Levi e os companheiros de prisão e sentirmos compaixão – apesar de o autor se recusar a uma narrativa sentimental e opte sempre por uma visão objetiva e por uma perspetiva sociológica dos acontecimentos – pelos presos e uma revolta profunda contra o regime nazi, para o qual os homens (estes que foram presos e assim mantidos sem qualquer justificação válida) nada contavam. E são estes os olhos e os sentimentos que experimento ao assistir aos acontecimentos na Ucrânia que temo que possam evoluir para uma situação de que todos temos conhecimento histórico mas que às vezes nos recusamos a ver numa perspetiva mais humana.
O que mais gostei neste livro é a forma simples como analisa o homem na sua essência e aquilo que verdadeiramente nos é essencial e como, através da narração desta experiência sociológica vivida na primeira pessoa, nos mostra como na essência, e quando lutamos pela vida, é mais o que nos aproxima do que o que nos distingue. “Fechem-se entre arames farpados milhares de indivíduos diferentes em idade, condição, origem, língua, cultura e hábitos e obriguem-se, nesse lugar, a um regime de vida constante, controlável, idêntico para todos e abaixo de todas as necessidades; é quanto de mais rigoroso um experimentador poderia instituir para estabelecer o que é essencial e o que é adquirido no comportamento do animal-homem perante a luta pela vida.”
E porque sou defensora de um Estado de Direito e acredito que as normas têm um propósito na construção de uma sociedade mais justa e igualitária termino com a reflexão do Primo Levi, tão oportuna no momento que vivemos “… de facto, considera-se tanto mais civilizado um país quanto mais sábias e eficientes são as suas leis que impedem ao miserável ser demasiado miserável, e ao poderoso ser demasiado poderoso.” Que saibamos todos aprender com a história e que os relatos que… neste caso através deste magnifico livro…. chegam até nós e nos dão as ferramentas para colaborar na construção de um mundo melhor e lutar para que não se repitam os erros do passado.
Vemo-nos nas próximas páginas!
* Escreve, quinzenalmente, a crónica literária “A páginas tantas”