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Viagens na nossa terra: John Wayne e eu vamos a Drave

Roteiro

Uma viagem há muito adiada concretizou-se finalmente. Um amigo e eu combinámos visitar Drave mas o plano foi várias vezes cancelado. Como o projeto nunca saiu da nossa agenda, olhámos para o calendário e fizemos um círculo a vermelho num sábado de janeiro, em que estávamos ambos livres. Até à sexta-feira anterior nenhum imprevisto de última hora me foi comunicado por ele a mim nem por mim a ele, pelo que o empreendimento iria mesmo realizar-se. Drave é, para quem não sabe, uma aldeia desabitada no concelho de Arouca, servida por um trilho pedonal (o PR14) de quatro quilómetros com partida de Regoufe.

Saímos de Aveiro uns minutos antes das 9 da manhã, passamos à margem de Estarreja e de Oliveira de Azeméis, cruzamos o centro de Vale de Cambra e uma hora depois chegamos a Arouca. Não paramos mas pomos o GPS a trabalhar. Do centro da vila a Regoufe são 20 quilómetros mas nas estradas de montanha as distâncias são traiçoeiras. O percurso é quase sempre a subir e a seguir a uma curva surge outra curva, mais apertada que a anterior, num sinuoso encadeamento que torna o avanço lento. Por outro lado, praticamente não há trânsito e temos a estrada quase por nossa conta.

Saímos de Aveiro com o céu limpo mas à medida que progredimos para o interior, montanha acima, forma-se um tecto de nuvens que torna o ambiente menos luminoso e mais lúgubre. Quase à chegada a Regoufe instala-se uma bruma tão densa que é quase palpável e é como se uma parede se interpusesse entre nós e a paisagem circundante. Mas o nevoeiro espesso rapidamente se dissipa e quando alcançamos Regoufe já não viajamos no interior dessa cápsula cinzenta.

Passamos por dois bois castanhos e de chifres pontiagudos que passeiam tranquilamente pela borda da estrada e estacionamos na parte alta da aldeia, junto ao Café Montanha, que está fechado a esta hora. Embrenhamo-nos na pequena povoação e um cão dá sinal da nossa presença. A dona, uma mulher de lenço na cabeça, orienta-nos para o início do trilho. Acabámos de chegar, ainda temos a ida e volta para completar, mas antecipando necessidades futuras perguntamos se mais tarde poderemos almoçar em Regoufe. A mulher é, por coincidência, a dona do Restaurante O Mineiro e diz-nos que só serve refeições por encomenda. Num dia assim não se justifica ter o estabelecimento aberto sem reservas prévias.

Com o problema do almoço para resolver depois, pomo-nos a caminho. Uma placa rudimentar em bico fixada à parede de uma casa, onde se lê “Drave”, mostra-nos que estamos no rumo certo. Atravessamos uma pequena ponte que nos transporta para a outra margem de um curso de água e deparamo-nos com uma encosta onde o trilho não está bem identificado. Subimos pelo meio de uma vegetação densa e onde o caminho é atravessado por grossos troncos de árvore tombados que temos de ultrapassar com algum esforço, antes de percebermos que estamos no sítio errado. O orgulho faz-nos avançar por este atalho até, uns metros adiante, entrarmos realmente no PR14.

Começamos com o pé esquerdo mas rimo-nos e o nosso ânimo não esmorece. O troço inicial do trajeto obriga a um certo esforço já que o caminho sobe bastante e é revestido por pedras soltas de vários tamanhos, obrigando a firmeza nos pés. Depois disso a exigência é suavizada e o resto da jornada faz-se sem dificuldades de maior. Drave situa-se no fundo de um vale pelo que o caminho de ida é feito maioritariamente a descer. Não há inclinações muito íngremes mas o regresso é ligeiramente mais duro.

O céu está agora completamente limpo permitindo-nos contemplar a paisagem de montanha com toda a nitidez, com as suas curvas ásperas e agrestes mas ao mesmo tempo quase voluptuosas. Nesta zona as encostas da serra são praticamente despidas de árvores e a vegetação é rasteira. À distância vêem-se algumas torres eólicas.

Imprimimos um ritmo lento e contemplativo à caminhada e é Inverno. Mas não deixa de ser um trilho de montanha e além do mais não está frio pelo que rapidamente começamos a transpirar. Parti munido de um gorro e de um cachecol mas nenhum destes apetrechos saiu da mochila. Ao fim de poucos minutos de caminho dispo o casaco. O meu amigo, porém, é mais radical. Poucos passos depois de eu me desfazer do casaco ele decide libertar-se de toda a roupa que traz vestida na parte de cima do corpo. Está agora em tronco nu. Em Arouca. No cimo de uma montanha. Em janeiro.

Se isto não é uma demonstração de virilidade, não sei o que será. Pensando num símbolo de homem viril, ocorrem-me John Wayne e os cowboys do velho oeste. Duvido que o meu amigo alguma vez tenha galopado no dorso de um cavalo com as suas botas cravejadas de esporas, tenho a certeza que nunca lavou a honra num duelo ao pôr-do-sol de revólver em punho e não creio que já tenha frequentado um saloon cheio de vaqueiros e coristas. Mas decido que John Wayne lhe assenta bem – e assim evito tratá-lo pelo verdadeiro nome, preservando a identidade deste intrépido homem, nascido para sobreviver nos ambientes mais selvagens e inóspitos.

De maneira que John Wayne e eu prosseguimos caminho, agora mais despojados de roupa, e ao fim de 45 minutos avistamos Drave pela primeira vez, ao dobrarmos uma curva do caminho. Daqui até à aldeia são mais 15 minutos, perfazendo cerca de uma hora desde o ponto de partida.

Como é inverno, a água tem uma presença marcante na paisagem. Vai jorrando com vigor dos pontos mais elevados da montanha, formando mesmo, aqui e ali, pequenas cascatas que hão de secar no tempo quente.

O dia convida a passeios e Drave é o destino escolhido por algumas pessoas para o passeio de sábado. A aldeia está abandonada há vários anos e os escuteiros são quem cuida dela. A Leira do Eucalipto, que servia de terreno de cultivo aos habitantes locais, foi transformada num acampamento. O Curral da Banzada (Banzada era uma vaca) é agora usado para guardar materiais. E ao longo da povoação vêem-se outros pequenos arranjos e construções feitos pelos escuteiros, como a ponte de madeira que atravessa a Ribeira da Bouça e a Ribeirinha. Tirando um painel solar, nada parece macular a integridade e a essência do lugar.

Mas não nos cruzamos só com escuteiros – há mais gente a deambular pelas ruas. Duas jovens – tão jovens que nos pareceram adolescentes quando as vimos pela primeira vez – vieram de Gaia. Chegaram à aldeia vindas de outro trilho, que nasce de uma estrada de terra batida onde deixaram o carro, e, apesar da idade, falam como se fossem veteranas de Drave. Dizem-nos que o Inverno é a melhor altura para a visita por causa da abundância da água. Nas outras estações, principalmente no Verão, a paisagem torna-se mais árida e, nesse sentido, menos interessante.

Percorremos as ruas da aldeia e verificamos que as velhas casas de pedra estão quase todas em ruína, conferindo um ar fantasmagórico e de abandono à povoação. Continua a ser, ainda assim, um sítio maravilhoso, símbolo de um Portugal de outros tempos. Uma casa destaca-se das demais – possui, a esta escala, uma imponência que as outras não têm. Por uma placa percebemos que era o Solar dos Martins. A pequena capela da aldeia é, por sua vez, o único edifício caiado, embora a tinta esteja toda a descascar.

Sentamo-nos numas pedras junto ao ribeiro, na zona baixa da aldeia, onde os visitantes se banham no Verão, antes de encetarmos o caminho de regresso. Despedimo-nos de Drave com a sensação de que estamos a deixar uma preciosidade para trás.

O chão está pejado de inúmeras bagas pretas com o formato de azeitonas mas quem fez o despejo não está à vista. A exceção é uma cabra solitária que descortinamos numa encosta da montanha, num socalco de difícil acesso que exigiu destreza ao animal. Nesta fase, a sapatilha do meu pé esquerdo ameaça desintegrar-se e passo o resto do passeio a rezar ao santo padroeiro daquelas terras para que a sola não descole totalmente. John Wayne, mais previdente, escolheu um calçado com que poderia subir ao Evereste.

De volta a Regoufe, conseguimos a proeza de nos sentirmos desorientados numa aldeia de três ruas, por onde galinhas e perus circulam livremente. A um homem sentado ao sol, desligado do mundo, perguntamos como chegar à rua do Café Montanha, onde o nosso carro ficou estacionado. Dá uma explicação tão simples que até dois meninos da cidade fora do seu ambiente natural percebem – “seguem por esta rua, viram à esquerda e sobem” –, antes de nos falar da vida.

Envergando apenas uma camisa e uma camisola, como se este fosse um dia do início do Outono, diz-nos que dantes a aldeia ficava coberta de neve nos invernos mais rigorosos mas que isso deixou de acontecer. Diz-nos também que sempre viveu da agricultura – milho, centeio, batatas – e mesmo agora, já velho, ainda vai todos os dias ao campo. Mas Regoufe já não é o que era. As minas, cujas ruínas podem ser visitadas, estão desativadas há décadas e a aldeia foi-se esvaziando aos poucos. Não tarda, diz com voz de lamento, Regoufe será como Drave. O habitante mais novo já tem mais de 60 anos. E os seus próprios filhos partiram – dois vivem em França, outro em Arouca e outro em Viseu. Este homem, estas casas, estas ruas, estes campos – tudo isto é o Portugal desertificado.

É hora de almoço e temos fome. Tentamos a sorte no Café Montanha, que está agora aberto. As duas mesas da esplanada estão ocupadas, por isso instalamo-nos no interior. Indagamos se servem refeições e a mulher ao balcão diz que sim – mas não naquele momento, porque a nora, que é quem cozinha, foi às compras. Pergunta se nos contentamos com umas sandes mas optamos por almoçar em Arouca. Ainda temos tempo, porém, para beber uma mini enquanto lemos umas inscrições escritas a giz em duas pedras de ardósias nas paredes: “economize água, beba cerveja”; “café para despertar, água para hidratar, vinho para ser feliz”.

E é com estes ensinamentos na bagagem que abandonamos Regoufe em direção a Arouca. Na viagem John Wayne pesquisa locais onde comer e sugere o Café Portela, quase às portas da vila. Como não dispõe de multibanco e temos pouco dinheiro connosco, e também porque não queremos esperar mais, a solução é mandar vir petiscos em vez da posta arouquesa que fazia parte da nossa lista de coisas a fazer, quase com o selo de prioridade número um. Em boa hora, porque as moelas do senhor Amílcar são realmente deliciosas, tenras e saborosas. “Moelas à moda de Angola”, explica o homem, baixo e de bigode. Despachados os dois primeiros pires, mandamos vir outros dois, com um molho escuro que acompanhamos com pão.

Finalmente alimentados, é hora do regresso a Aveiro, a última etapa do dia. Chegamos a meio da tarde, felizes com o passeio. Além do gorro e do cachecol, na mochila ficou também um livro de bolso que John Wayne entendeu levar: “SAS survival guide – how to survive in the wild, in any climate, on land or at sea”. É um guia de sobrevivência que nos ensina a lidar com qualquer perigo na natureza, mesmo aqueles que nós julgamos impossíveis. Uma recomendação, entre centenas, é esta: “Urina e água do mar: nunca bebam nenhuma delas – nunca! Mas ambas podem produzir água potável se forem destiladas” – e mostra como, claro. Tenho a certeza que se algum peru enfurecido nos tivesse atacado em Regoufe, este livrinho nos teria salvo. Mas desta vez não foi preciso. Talvez para a próxima.

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