AveiroMag AveiroMag

Magazine online generalista e de âmbito regional. A Aveiro Mag aposta em conteúdos relacionados com factos e figuras de Aveiro. Feita por, e para, aveirenses, esta é uma revista que está sempre atenta ao pulsar da região!

Aveiro Mag®

Faça parte deste projeto e anuncie aqui!

Pretendemos associar-nos a marcas que se revejam na nossa ambição e pretendam ser melhores, assim como nós. Anuncie connosco.

Como anunciar

Aveiro Mag®

Avenida Dr. Lourenço Peixinho, n.º 49, 1.º Direito, Fracção J.

3800-164 Aveiro

geral@aveiromag.pt
Aveiromag

Viagens na nossa terra: O nosso maravilhoso mundo rural

Roteiro

Duas casas a seguir à minha, a dona Carminda, uma anciã com quase 90 anos, afixou no portão um pequeno letreiro rudimentar onde informa a quem passa que tem ovos à venda. É lá que me abasteço. É comum ver esta mulher a tratar da sua pequena horta e dos seus animais. Embora a cidade esteja a dois passos, esta é uma zona rural de Aveiro.

Saio de casa montado na bicicleta que me acompanha nos últimos 15 anos mas em vez de me dirigir à selva urbana sigo na direcção contrária, a partir do Paço. Passo por duas grandes fábricas e embrenho-me numa área ainda mais marcadamente rural, com campos de cultivo de ambos os lados da estrada, muitos deles orlados por fileiras de árvores, plantas e arbustos que adquirem o seu esplendor máximo nesta época do ano. Escolha ingrata, mas da rica profusão de flores é o jasmim o meu preferido, de delicadas pétalas brancas e aroma inebriante que perfuma o ar num raio de vários metros.

Cruzo-me com um tractor conduzido por um homem de meia idade e prossigo rumo a Sarrazola. Antes de chegar à rua principal passo pela discreta Associação de Convívio de Sarrazola, instalada no que parece ser um café. Mais adiante, o comércio de aldeia manifesta-se em várias pequenas lojas – um talho, uma mercearia, até uma agência funerária e, claro, cafés, que isto é Portugal.

Entro na mercearia. Franqueio a porta menos interessado em comprar algo do que em observar o seu interior. Para meu contentamento deparo-me com uma pequena relíquia de outros tempos, uma daquelas lojas em vias de extinção. As paredes estão forradas com armários de madeira até ao tecto cujas prateleiras estão preenchidas com produtos que não são abundantes mas suprem as necessidades básicas de quem mora por ali. No chão, em caixas plásticas dispostas em cima de estrados de madeira, repousam alfaces, tomates, cenouras e outros produtos da terra.

À minha chegada, uma mulher velha levanta-se vagarosamente da cadeira onde está sentada e vem ao meu encontro, com evidente dificuldade. Tanto esforço para vender uma garrafa de água por 20 cêntimos, deve ter pensado. Tem 87 anos e trabalha naquela casa há mais de 70, diz-me. Antes de sair reparo num caderno pousado no balcão, que bem pode ser o livro de calotes que era tão frequente nestes estabelecimentos.

De volta à rua reparo num letreiro aparafusado a um portão onde se lê “Há folares”. Noutro portão, mais à frente na viagem, anuncia-se “há batata nova”. Noutro ainda lê-se “há ovos” e ao lado “há fardos de palha”. Esta micro economia informal é um dos encantos destes lugares.

Algum comércio sucumbe. Em Cacia, uma loja onde há muitos anos mandara reparar um velho gira-discos tem as persianas cerradas e sem sinais de actividade. Uma mulher que passa a pé conta-me que o homem está agora acamado. Pesaroso, agradeço-lhe a informação. “Ora essa, amiguinho”, despede-se.

Ali perto fica a antiga escola primária de Sarrazola, um bonito edifício que já viu melhores dias e que agora parece ocupado pelos escuteiros, a avaliar por uma placa numa das suas paredes. Uns metros à frente, junto à linha do caminho-de-ferro, no muro de uma casa está afixada uma placa em mármore onde se lê “João P. Soares, Médico” e quase a seguir fica a Casa do Povo de Cacia.

Para além da paisagem natural, quem for atento pode também desfrutar de pequenos fragmentos de informação, que dizem muito sobre as nossas terras. As paragens de autocarro, mas também as montras das lojas ou as pequenas vitrinas destinadas a expor informações de interesse geral, são o sítio ideal para saber coisas. Quem morreu, por exemplo. Mas também, no espectro oposto desta escala de acontecimentos, celebrações e eventos. Na parede de um café anuncia-se um concurso de fotografia e um convívio de antigos combatentes da Guerra do Utramar. Noutra parede ficou esquecido um cartaz sobre a Semana Santa de Cacia e noutra ainda convida-se para um “passeio da comunidade” a Vila Franca do Lima. Um cartaz da associação Os 100 Gola anuncia o 1º Passeio de Motos e Motorizadas e numa paragem de autocarros dois letreiros convidam para o 2º Arroz de Galo e Convívio de São Bartolomeu e para uma angariação de fundos para a Festa em Honra de Santo António de Vilarinho. “Venham almoçar connosco. Temos o melhor pernil e diversos petiscos”, promete-se. No vidro de outro café divulga-se a noite Fados & Sabores organizada pelo Grupo Folclórico da Casa do Povo de Cacia e na ementa não falta um “menu vegan (mediante reserva)”. Por cima estão dois cartazes dirigidos aos mais velhos: um promove o Boccia Sénior e outro o “futebol a passo”, que é “uma nova modalidade para seniores”. Para quem não conhece, eis as regras básicas: “não se pode correr e a bola não pode ser jogada pelo ar”; cada equipa tem seis jogadores de ambos os sexos e não há guarda-redes; “os jogos têm 15 minutos de duração, divididos por dois tempos de sete minutos” (talvez fossem úteis umas aulas de matemática a acompanhar este “futebol a passo”). Editais das juntas de freguesia e convocatórias de grupos locais como a Associação Promotora de Cultura, Recreio e Desporto também se encontram espalhados por vários sítios e há quem aproveite para anunciar “cuido de idosos durante o dia e durante a noite”. E, claro, nas igrejas e capelas que abundam nas nossas terras os fiéis são informados de um grande sortido de actividade litúrgica: eucaristias, visita pascal, encontro da pastoral de saúde, oração mariana, oficina de oração e vida, encontro de famílias de acolhimento, celebração da penitência. Haja tempo e fé para todos estes compromissos com o altíssimo.

A atenção aos pormenores permite descobrir preciosidades como dois pequenos painéis de azulejos na fachada de uma habitação com a legenda “leiteiras de Sarrazola”, pintados por A. Menezes, de Biscaia, Albergaria-a-Velha, ou, olhando para as placas da toponímia, saber quem foi Francisco Manuel Couceiro da Costa e outros ilustres destas povoações.

Sigo lentamente no encalço de uma mulher já de idade avançada, montada numa bicicleta funcional mas que, de tão velha, parece que se pode desfazer a qualquer momento. A mulher, com avental e botas de borracha até ao joelho, pedala até uma pequena leira onde se irá dedicar aos seus afazeres agrícolas, um exemplo da agricultura de subsistência que ainda se pratica nestes pequenos lugares.

Avistamos lavadouros, fontes e fontanários e muitas casas rurais, quase todas modestas mas maravilhosas, muitas delas com inscrições por cima das portas ou dos portões com o ano da construção e o nome do proprietário original. “M. Ferreira 20-4-1915” e “F. S. Neto 1-10-1924”, lê-se em duas delas.

Muitas destas habitações estão ornamentadas com magníficos painéis de azulejos, de diferentes tamanhos, cores e padrões. Em muitos casos, esses conjuntos estão já incompletos e mutilados, acompanhando a triste decadência das casas em que em tempos foram assentados.

Impressiona a quantidade destas velhas casas de lavoura abandonadas ou em diferentes graus de degradação – são dezenas no Paço, na Póvoa do Paço, em Vilarinho, em Sarrazola, em Mataduços, em Cacia. Algumas atingiram a ruína e já encomendaram a alma ao criador e outras para lá caminham rapidamente. Outras parecem ainda robustas e recuperáveis e numa época em que tanto se fala da crise na habitação não custa imaginar muitas famílias a lá viverem alegremente.

A par dos exemplares mais humildes existem outras velhas habitações admiráveis mas que em muitos casos nem assim escapam ao declínio. Encontramos uma na Rua das Almas e outra no cruzamento da Rua da Marinha Baixa com a Rua Marquês de Pombal, para dar apenas dois exemplos. Esta última é um edifício de dois pisos completamente revestido a azulejos com um bonito varandim de pedra a toda a volta do telhado. As janelas estão esventradas e ao espreitar por uma delas vejo uma lata de Coca Cola, um guarda-chuva partido, muito lixo e mil pedaços dos escombros em que a casa se está aos poucos a tornar.

Algumas destas casas foram postas à venda, o que se percebe pelos letreiros de empresas imobiliárias, e outras foram ou estão a ser recuperadas. Mas assola-me a sensação de que este rico património arquitectónico e social se está irrevogavelmente a perder sem grande estremecimento e comoção. Há um Portugal que está a desaparecer diante dos nossos olhos, penso.

Mas estas áreas rurais ainda são, apesar de tudo, zonas maravilhosas. Claro que nem tudo é idílico e bucólico, em especial para quem vive da pequena agricultura – para esses, sempre sujeitos aos humores do clima, da terra ou da economia, é certamente disparatada a ideia romantizada da vida no campo e muitos não escapam à pobreza. Mas numa sociedade crescentemente urbanizada é um bálsamo andarmos entre couves e vacas, mercearias e festas de aldeia. É aproveitar, antes que seja uma causa perdida.

Campus Jazz Publicidade

Apelo a contribuição dos leitores

O artigo que está a ler resulta de um trabalho desenvolvido pela redação da Aveiro Mag. Se puder, contribua para esta aposta no jornalismo regional (a Aveiro Mag mantém os seus conteúdos abertos a todos os leitores). A partir de 1 euro pode fazer toda a diferença.

IBAN: PT50 0033 0000 4555 2395 4290 5

MB Way: 913 851 503

Deixa um comentário

O teu endereço de e-mail não será publicado. Todos os campos são de preenchimento obrigatório.