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Viagens na Nossa Terra: Estaleiros de São Jacinto, um cadáver em decomposição

Roteiro

Sigo pela EN327 vindo da Torreira, que à entrada de São Jacinto se transforma na Rua 25 de Abril, e diviso os antigos estaleiros navais ao fundo, à esquerda. São como um velho e decrépito fidalgo arruinado, já sem brasão, sem solar, sem baixela de prata, sem jóias de família, sem faisões no jardim, mas ainda com a sombra da majestade de outrora. Já perdeu tudo, mas conserva ainda algum do porte e uma centelha da dignidade e grandeza que exibiu nos seus dias de glória.

Os antigos estaleiros são um magnífico exemplar de arquitectura industrial. É uma dor de alma contemplá-los agora. Estão abandonados há anos e o que não cair por si cairá à força do camartelo, um dia. Junto à entrada há um letreiro amarelo afixado pela Junta de Freguesia onde se avisa “perigo de derrocada”. Talvez o mais acertado fosse “identidade e memória: perigo de derrocada”.

Há muito que os estaleiros deixaram de ter viabilidade económica. Definharam primeiro e morreram depois. Mas também a antiga fábrica Campos foi abandonada e nem por isso deixa ainda hoje de ser um símbolo local. Alguém imagina Aveiro sem aquele imponente edifício de tijolo?

Dirijo-me a São Jacinto num daqueles dias de nortada impiedosa. Um velho em cima de um tractor, com quem me cruzo junto à Ponte da Varela, segura o volante com a mão esquerda e o chapéu com a mão direita, para não ter de o ir recuperar ao Cais do Bico.

Ao almoço na marginal segue-se uma rápida excursão à praia. O tempo não está convidativo e quase ninguém vagueia por lá. Uma rapariga quase vestida como se estivéssemos em Dezembro faz o caminho de regresso do areal até ao carro. Subo ao passadiço de madeira que conduz à areia por entre as dunas e avanço uns metros, até ver o mar, mas rapidamente dou meia volta, fustigado pelas rajadas de vento.

Deixo para trás a faixa marítima e regresso à zona lagunar, onde o casario se aglomera junto à marginal. Na ponta do bairro jaz o que resta dos antigos estaleiros. São eles o que mais me fascina em São Jacinto - não a praia, não a ria, não a mancha verde da reserva natural, não o peixe que se come nos restaurantes locais.

Percorro a pé a curta distância que separa a área de comércio – restaurantes, pastelarias, mercearias, lojas de artigos de pesca - do antigo complexo industrial. Um Popeye de cachimbo ao canto da boca desenhado num muro junto à ria deseja “boa pesca” e é isso que fazem vários pescadores, de cana na mão. Ao lado, um dos edifícios, já sem portas ou janelas, é encimado pelo icónico painel de azulejos amarelos onde a letras negras se lê “Estaleiros São Jacinto”. É como um espectro a dar-nos as boas-vindas.

O grande muro que delimita o recinto ainda se conserva de pé, ornado com inúmeros grafitos, destacando-se uma gaivota de grandes dimensões. Os muros e paredes dos edifícios foram telas em branco que os artistas de rua usaram para a sua arte. Aquilo que parece ser a cabeça de uma criatura alienígena é um dos desenhos que mais se realçam.

O interior do complexo parece saído de um filme de guerra, como se uma bomba tivesse explodido e deixado tudo em escombros. Milhares de cacos que pavimentam o chão. Vegetação selvagem por toda a parte. Edifícios que mal se seguram de pé e outros que já colapsaram. Portas e janelas desguarnecidas. Cabos eléctricos desaparecidos.

De alguns edifícios ainda se percebe a antiga função pelos letreiros que sobreviveram à destruição, permitindo imaginar a organização interna. Um pequeno painel de azulejos identifica os “Escritórios” e no que resta de uma parede de cimento ainda se lê “Secção de Pintura”, a tinta branca que se vai esbatendo a cada dia.

Ao deambular pelo espaço, fragmentos de centenas de telhas da Cerâmica Aveirense – João Pereira Campos estalam debaixo dos pés. É um imenso tapete cor-de-laranja que forra o pavimento do velho complexo. Ao alto, a meio de um terrado no centro do complexo, permanece ainda, com o orgulho possível, o antigo depósito de água.

A um canto fica o mais imponente dos edifícios, hoje uma carcaça com colapso anunciado. No seu interior, seja no rés-do-chão seja nos pisos superiores, centenas de documentos estão agora amontoados no chão, num quadro caótico. Na nota de entrada 07912 percebe-se uma encomenda de material eléctrico e de outros bens necessários ao funcionamento da empresa. Noutro papel, com a data de 1967, é feito o registo das entradas e saídas de carvão de coque. Um documento do Instituto Nacional de Investigação das Pescas também está por ali perdido. Aqueles pedaços de papel contam a história dos estaleiros, mas também eles parecem fatalmente condenados ao pó.

Este edifício e outros estão agora transformados em autênticas lixeiras. Embalagens de plástico, maços de tabaco, garrafas, latas, cabides, sacos, páginas de jornal – tudo ali foi depositado e tudo ali permanece, numa desordem insalubre.

O colosso que outrora foram os estaleiros é um corpo em agonia ou, melhor dizendo, um cadáver em decomposição. Um triste fim. Este fantasma paira sobre a povoação mas já se tornou invisível. Parede a parede, muro a muro, pedra a pedra, telha a telha, vai-se despedindo de nós.

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