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“Quando os tontos mandam” – não se deixem enganar pelo título

Opinião

A páginas tantas

Filipa Matias Magalhães*

Numa homenagem mais do que merecida a um dos meus autores favoritos, que infelizmente nos deixou no ano passado, num dia tão significativo para todos aqueles que, como ele, defendem a liberdade e combatem o obscurantismo, trago-vos esta semana uma leitura que tem tanto de agradável e divertida como de crítica social. “Quando os tontos mandam” reúne 95 artigos do autor espanhol Javier Marías Franco, um dos mais relevantes da literatura contemporânea.Não se deixem enganar pelo título e não julguem que nesta coletânea de artigos escritos entre fevereiro de 2015 e janeiro de 2017, só os que mandam e, em especial aqueles que detêm o poder em Espanha, é que são objeto de crítica, pois a verdade é que estes são textos sine loco e intemporais e não têm como principal objeto os detentores do poder no sentido mais tradicional.

Aliás, algumas das coisas que mais me agradaram neste livro foram o facto de olhar para os vários poderes na sociedade, sem centrar a crítica apenas no poder político – erro em que é tão fácil embarcar! -, analisando aqui também o poder no mundo do futebol, na justiça, na economia e, sobretudo, o poder “falsamente” atribuído pelas redes sociais ao comum dos cidadãos que nem sempre o sabe exercer da forma mais correta. Por outro lado, sou grande fã de todos aqueles que escrevem sem medo de magoar, ferir suscetibilidades ou com medo de consequências. Gosto muito da escrita franca, direta e sincera do Javier Marias, escritor sem medos e sem necessidade de medir o peso das palavras. Por último, estes textos, embora sejam sobre a realidade espanhola, adequam-se perfeitamente a qualquer país (que viva em democracia, com tudo o que de bom esta tem) e a toda e qualquer sociedade do mundo desenvolvido. Esta caraterística sine loco é um excelente antibiótico para todos os que, como nós portugueses, vivemos numa constante autopunição e crítica, achando sempre que somos os piores em tudo. Não, não somos! Não seremos certamente os melhores, mas no que concerne ao mau uso do poder, pelos mais poderosos e pelos que exercitam até ao limite os mais pequenos poderes, somos como tantos outros países e, em concreto, são muitas as semelhanças com os nossos vizinhos espanhóis.

Embora, como sugere o título da coletânea numa primeira leitura, os vários textos analisem e critiquem as falhas do poder político, económico e até mesmo o poder e as relações de poder que se estabelecem no mundo, a verdade é que o autor tem a lucidez e a clarividência de ir além desta análise fácil e superficial pois, na verdade, cada um destes poderes só existe porque nós, enquanto sociedade e enquanto cidadãos, não fazemos um bom uso de dois dos maiores poderes/direitos que a democracia nos reconhece: o direito ao voto e o direito à liberdade de expressão. “Tenho para mim que algumas pessoas se deixaram contagiar pelas contínuas votações “populares” da televisão e das redes. Para elas, tudo aquilo se converteu num jogo, e já não distinguem entre expulsar um concorrente do Big Brother e decidir algo, a sério, que pode arruinar-lhes a vida ou mudá-la para muito pior. Votam com a mesma despreocupação...”.

Se há uma ideia presente nos diversos textos é esta reflexão, tão importante e atual, sobre o perigo das redes sociais e a ausência de conhecimento e espírito crítico de todos nós que temos o mais importante dos poderes nas mãos – o voto.

Uma das maiores ameaças à democracia é esta facilidade com que as pessoas tendem a acreditar mais facilmente numa mentira bem contada do que numa verdade nua e crua, sem o glamour e o sensacionalismo das primeiras. “Pode fazer-se alguma coisa num mundo em que contamos com gravações, com som e imagens, com máquinas calculadoras mais fiáveis do que nunca, e tudo isto é refutado com desfaçatez? Estaremos amodorrados, hipnotizados ou simplesmente idiotizados para acreditarmos mais em quem distorce a realidade do que nos nossos olhos e ouvidos, e até do que na aritmética?”.

A liberdade de expressão, direito tão arduamente alcançado é, de facto, quando bem usado, capaz de alcançar grandes feitos, todavia, o problema é quando esta é mal usada e todos se arrogam o direito de dizer o que querem e como querem, sem averiguar a veracidade do que dizem e as respetivas consequências. Tendo a orientar-me pelo princípio de que “mais vale o silêncio sabedor do que a fala sem conteúdo” e que, se o que vou dizer, vai ferir alguém sem necessidade nem objetivo, mais vale estar calada e, de facto, Javier Marias tem um ponto de vista interessante sobre os limites da liberdade de expressão. “Há muita gente que fala mal, que ridiculariza a religião dos outros. Essas pessoas provocam e pode suceder-lhes o que sucederia ao doutor Gasbarri se ofendesse a minha mãe. Há um limite, todas as religiões têm dignidade, todas as religiões que respeitem a vida humana. (…) Não posso gozar com elas. E esta é o limite. (…) Há limites para a liberdade de expressão, como no exemplo da minha mãe.”

Gostei particularmente – porque me revi nesta ideia – de vermos como limite o “gozo e ofensa da nossa mãe” pois este é um limite que todos reconhecemos como incontornável. Todavia, não se pense com isto que o autor defende uma aceitação passiva de toda e qualquer ideologia e prática religiosas pois, também neste aspeto, Javier Marias deixa uma importante linha bem marcada.... desde que estas “respeitem a vida humana”! Atrevo-me a ir um pouco mais longe e acrescentar que todas as religiões, culturas, ideologias ou sociedades que não põem em causa a vida humana, nem ofendem os direitos humanos, merecem o nosso respeito e tolerância, ao contrário daquelas que ofendem a vida e os direitos humanos. Neste caso sim, é nosso dever de cidadãos, darmos um bom uso ao nosso direito à liberdade de expressão, denunciando e combatendo tudo aquilo que não pode aceitar-se num estado de direito e dando voz a quem não o pode fazer. Guardemos, pois, a nossa indignação para aquilo que merece!

Nunca será demais voltar à importante discussão sobre a definição dos limites da liberdade de expressão, pois as redes sociais ao criarem a (falsa) ideia da democratização da liberdade de expressão esqueceram-se que esta encerra em si a responsabilidade por tudo o que se diz. Falta a muitos “incendiadores” e revoltados das redes sociais, o espírito crítico e a sensatez para fazer bom uso da liberdade de expressão, e a prova disso é a quantidade de posts que incendeiam e instigam ao ódio, de forma leviana e inconsequente. “Estamos a criar pessoas, salvo as devidas distâncias, não muito diferentes dos fanáticos do Daesh ou dos talibãs. Se se erige a subjetividade de cada um em barómetro do que esta bem ou mal, do que é tolerável ou intolerável, não tenham dúvidas de que dentro de pouco tempo estará mal e nada será tolerável, a começar pelo simples intercâmbio de opiniões, porque sempre alguém “delicado” se dará por ofendido”. O cultura de ódio e de fúria que as redes sociais potenciam são um perigo para a paz social. Vemos isso nas relações entre amigos que se enfurecem por acaloradas discussões virtuais sobre os resultados futebolísticos da semana, mas mais grave do que a discórdia (felizmente ultrapassada) nas relações mais próximas, o perigo das redes sociais é que tantas vezes disparamos insultos e acusações contra aqueles que dificilmente os ultrapassarão e não tenhamos a capacidade para distinguir, de forma serena e racional aquilo que deve merecer a nossa indignação, como práticas religiosas ou culturais que põem em causa os direitos humanos, atitudes xenófobas, homofóbicas ou qualquer forma de discriminação, daquilo que não deve merecer mais do que a nossa desaprovação, ou até mesmo o nosso desprezo, e ninguém lucra com uma discussão interminável sobre o assunto. O problema é que os internautas com esta facilidade para se indignarem, facilmente encontram ódios de estimação e debatem os assuntos tantas vezes sem os conhecerem, sem escutarem e sem uma reflexão séria prévia e, por isso, são tão intolerantes e perigosos - pois, sem o saberem, e confortados pela “certeza das suas fake news” são os mais manipuláveis.

Mais do que apelar à empatia de todos aqueles que têm tanto poder ao escrever um tweet, um post ou uma qualquer publicação, é preciso alertar para as consequências e responsabilidade pelos mesmos. “Uma pessoa pergunta-se como é que há nas nossas sociedades tantos indivíduos por um lado ociosos e, por outro, com tanta má sanha. É preciso ter uma vida bem vazia e aborrecida até ao desespero para andar a empreender no que disse num tweet qualquer idiota de quem nada se sabe, ou à fotografia infeliz que postou no Facebook uma jovem que pretendia ser graciosa.” Javier Marias remata e conclui, que a vaidade e o ego de uns são a razão para parte das ofensas a que vamos assistindo nas redes “o narcisismo dos nossos tempos não pode conformar-se com isso: os idiotas e os engraçadinhos precisam de exibir-se e anseiam por universais aplausos abstratos.”

O autor diz ainda que, se é verdade que a estupidez existe desde que o mundo é mundo, nunca esteve tao organizada pois, enquanto antes as parvoíces de cada parvo eram ditas pelo bar ou numa conversa telefónica entre particulares, sem contagiarem outras opiniões ou estarem sujeitas a esta epidemia de imitação, agora “qualquer tolice costuma ter êxito imediato, legiões de seguidores, instantaneamente brotam dezenas de milhares de assinaturas que a subscrevem, fazem pressão e muitas vezes impõem os seus critérios ou as suas censuras ou as suas proibições.”

Para quem não conhece a obra de Javier Marias, esta é uma excelente oportunidade de conhecerem o seu sentido de humor (mesmo que a piada seja ele mesmo ou os seus) e o seu sentido crítico tao apurado e realista e dou-vos como exemplo disso, um texto que nos vai fazer sorrir a todos nós, portugueses, que tantas vezes olhamos para os espanhóis como um povo que se considera “dono do mundo”. Seja porque já dividimos com eles o palco do mundo e o abandonámos para nos conformarmos com o papel de eternas vítimas que pedem desculpa a toda a hora, seja porque efetivamente tal corresponde à verdade, não deixa de ser curioso olhar para a perspetiva de Javier Marias sobre os seus conterrâneos. “Às vezes dá a impressão que a última coisa que o espanhol médio está disposto a fazer é admirar. Que digo? Nem sequer aprovar. Que digo? Nem sequer conceder a quem quer que seja o benefício da dúvida. Como se a maior desgraça que pudesse acontecer-lhe fosse que alguém vendesse gato por lebre e sobressaísse.”

Deixo-vos, assim, esta sugestão de vários textos de um excelente autor, com críticas muito perspicazes e atuais e com um grande sentido de humor que nos deixam uma importante reflexão: “A liberdade está hoje rodeada de inimigos, e os membros do Daesh e os talibãs não são os únicos. Pouco a pouco, e com subterfúgios, compete-se com eles nas nossas sociedades. Nelas, as liberdades arduamente conseguidas estão a cair, em abominável conivência entre a direita e a esquerda ou o que assim se chamava.”

Vamos todos ler, ler muito e boas obras, para sabermos exercer bem a nossa liberdade de expressão e pormos os nossos conhecimentos ao serviço das causas mais nobres, pois a ignorância é o melhor alimento dos ódios que incendeiam as redes sociais e se instalam na sociedade. Vamos contrariar esta tendência e marcar a diferença pelo que lemos e por tudo o que de bom a leitura produz!

Vemo-nos nas próximas páginas!

“Quando se cede terreno aos tontos, está-se a prestar-lhes atenção e a levá-los a sério; quando estes impõem as suas necessidades e mandam, o resultado costuma ser a tontificação da cena. A uns opõem-se-lhes outros, e a vida inteligente fica coibida, encurralada. Quando esta se acobarda, se retira, se põe à margem, no fundo fica arrasada.”

* Escreve, regularmente, a crónica literária "A Páginas Tantas"

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