Não sei bem onde estou – mas perdi-me porque quis. Tenho o GPS desligado, estou por minha conta. Não possuo o instinto dos pássaros, que sabem para onde voam. Conduzo sem rumo, fora das estradas principais. Não preciso da intuição, porque não vou em busca de nenhum destino. Vou atento às estradas, às árvores, às casas, às alminhas, aos espigueiros, às paragens de autocarro rudimentares onde nunca parece estar ninguém. Observo também as placas toponímicas à entrada de cada lugar. Gosto da poesia destes nomes, singela e primitiva: Trebilhadouro, Fuste, Merlães, Sandiães, Passô, Rôge, Pêdre. Numa viagem sem desígnio e direção, como uma bússola avariada, encontramos o que encontramos. Como não procuro nada, não encontro o que procuro, encontro o que me é oferecido.
Viajar sem mapa e sem relógio oferece uma liberdade que uso para me deixar surpreender a cada curva do caminho. Sigo numa rota aleatória - estou em Fuste mas podia estar em Merujal, estou em Rôge mas podia estar em Cabrum. Viro à esquerda, mas podia virar à direita. Subo a montanha, mas podia descê-la. Decido no momento, a cada bifurcação.
Esta anárquica deambulação por estradas estreitas que são como as minúsculas nervuras da serra conduz-me a Merlães, um pequeno aglomerado de casas despretensiosas e muitas certamente vazias. Naquela que, das quatro ou cinco, parece ser a rua principal deparo-me à esquerda com o Café Central, anunciado num toldo vermelho em cuja sombra estão dispostas algumas mesas e cadeiras e grades de Super Bock, Sagres, Sumol e 7 Up, empilhadas umas nas outras como uma pequena construção de legos.
Entro e encontro o café na penumbra, com a televisão ligada com o som muito alto. O sítio está vazio, com exceção dos donos, um homem de 83 anos, que come o almoço sentado a uma mesa da cozinha, entrevendo-se pela porta aberta, e uma mulher de 76, que me atende ao balcão. Peço-lhe uma garrafa de água, embora não precise - já tenho três no carro.
Ocorrem-me os velhos letreiros junto às passagens de nível: pare, escute e olhe. É um bom mote para quem empreende uma viagem e para quem escreve sobre ela. É isso, e não a sede, que me faz parar o carro e entrar - descobrir que Portugal existe aqui. O homem mastiga o seu almoço, desinteressado do resto. A mulher segura uma pequena côdea de pão, que vai levando à boca. Fala de Merlães e da vida. Conta que tinha uma mercearia, mas fechou-a. “Agora só há isto, não há mais nada”.
Pergunto-lhe enfim onde posso almoçar. Diz-me que o restaurante mais próximo é no Santuário da Nossa Senhora da Saúde. Como tenho fome, acordo o GPS e sigo as suas ordens. O restaurante está quase cheio – as pessoas comem bacalhau e feijoada enquanto a televisão despeja na sala uma reportagem sobre um homem que bateu numa mulher e agrediu um polícia.
Pago sete euros, saio e detenho-me numa placa com informações sobre o trilho PR5 - Aldeias do Arestal. Aponto no caderninho que trago comigo, como lembrete para um passeio futuro. Regresso à estrada, retomando a marcha por caminhos arbitrários – e volto a perder-me. Como em tantos passeios pela região rural e montanhosa, as estradas estão quase por minha conta. Sintonizo uma rádio local. Alguém canta “E então eu fui mais acima, Dei-lhe um beijo na virilha, Ela disse mais ao lado, Mais ao lado é maravilha”. Noutra frequência ouve-se um programa de discos pedidos.