No dia seguinte a ter publicado “A caminho de nenhures” na Aveiro Mag – o relato de um passeio no miolo de um triângulo irregular entre Vale de Cambra, Arouca e Sever do Vouga -, o meu pai contou-me como era habitual ele e o meu avô irem à pesca da truta nas águas do Rio Teixeira, na companhia de um morador de Cabrum que lhes servia de guia.
Percebo, pelo tom com que fala, que é uma memória feliz. Imagino-os a percorrerem o curso do rio e a vencerem os seus obstáculos, ainda cheios de força nas pernas, e a deixarem-se deslumbrar pelas maravilhas da natureza.
Essa recordação foi como premir um gatilho. Formou-se logo na minha mente a decisão de ir em busca do Rio Teixeira. Iria calcorrear as margens que outras gerações do meu sangue percorreram antes de mim. Não consegui escapar a esta ideia.
Ao contrário dele e do meu avô, não tenho vocação de pescador ou de caçador. Nunca dei um tiro e por isso nunca alvejei uma perdiz ou uma lebre; e as raras experiências empunhando uma cana de pesca tiveram sempre um final inglório – para mim, não para os peixes. Sem essa aptidão, e na verdade sem esse interesse, partiria apenas pela descoberta.
Saio de Aveiro numa manhã de sábado e uma bruma pardacenta acompanha-me até Vale de Cambra. Aí opera-se uma benigna transformação: o sol oferece uma nova claridade ao mundo, como se de repente uma lâmpada potente se acendesse num quarto na penumbra. Faço uma primeira paragem na praia fluvial de Burgães, banhada pelo Rio Caima, às portas de Vale de Cambra. Rumo depois a Cepelos, onde observo a igreja e passeio pelo Parque de São João Baptista.
Percorro mais alguns quilómetros por estradas estreitas, sinuosas, ladeadas de árvores imponentes - e vazias. Na serra, uma estrada não é apenas uma estrada, com a função utilitária de nos levar de um sítio a outro. É ela própria um monumento tão deslumbrante como uma pequena capela, uma casa de xisto ou uma paisagem.
Chego a Pontemieiro, na Serra do Arestal, onde abundam os amieiros, os carvalhos ou os castanheiros. Deixo-me encantar pela aldeia e imagino-me a viver aqui. As suas casas graníticas, cujos muros, janelas e varandas estão ornamentadas por floreiras coloridas conferindo um aspeto hospitaleiro ao lugar, alinham-se em não mais de duas ou três ruas estreitas. Raras são as que estão em mau estado. O despovoamento, que leva ao abandono e à ruína de muitas casas, como caruncho que corrói as aldeias, não tem aqui esse efeito.
Junto a uma fonte, uma mulher de cabelos grisalhos rega as plantas à porta de casa. Pergunto-lhe se é seguro beber daquela água. “Nós sempre a bebemos e nunca nos fez mal”, responde. A aldeia, diz ela, tem agora dez habitantes – e quase todos são velhos. As características deste pequeno aglomerado são ao mesmo tempo uma bênção e um castigo – o sossego e o ar puro, o isolamento e a solidão. Aqui, longe das cidades anónimas e gentrificadas, os problemas são outros.
Despeço-me dela, acerco-me da fonte, dobro as mãos em concha e bebo a água fresca que jorra da bica. Deambulo pelo lugar, passando por uma horta comunitária, um café onde se anunciam bifanas e chouriça assada e uma micro biblioteca de madeira e vidro criada pelos moradores, através da sua Associação dos Amigos de Pontemieiro. Desço depois à praia fluvial, com o Rio Amarela aos seus pés.
Regresso ao carro e conduzo até Arões. Aqui entro no café e mercearia O Celeiro, em cuja esplanada bebo uma água e como um pastel de bacalhau. A escola primária, agora a sede dos escuteiros, está desactivada – é um dos tristes símbolos destes territórios quase vazios.
Prossigo caminho. Uma placa capta a minha atenção. Aponta para a Casa da Broa de Paraduça. Altero a rota e vou à procura. Paro primeiro na cascata do Poço do Linho, uma sucessão de quedas de água que se precipitam para o Rio Teixeira e à qual é possível aceder através de um pequeno passadiço de madeira.
Para meu desgosto, deparo-me com a Casa da Broa fechada. Inaugurada em 2021 na antiga escola, foi criada pela própria comunidade, através da Associação de Desenvolvimento Turístico e Promoção Cultural de Paraduça, para proteger e valorizar a forte tradição agrícola associada à cultura do milho. Não será o único infortúnio do dia, como não tardarei a descobrir.
Aproxima-se a hora do almoço. O meu plano é almoçar na Adega Persigo, em Ervedoso. O GPS leva-me a uma casa sem letreiro. Pergunto a um casal de velhotes se é ali o restaurante. “Isto não é um restaurante, é uma tasca”, corrige a mulher, no tom de quem responde a uma heresia sem perdão - imagino-a a fulminar-me com severas imprecações se lhe tivesse perguntado se serviam pizzas ou hambúrgueres. Acontece, explica a mulher, que a adega está aberta mas só atende mediante reserva e encomenda.
Abandono Ervedoso cabisbaixo e sigo caminho. Encosto o carro numa reentrância da estrada, onde tenho o primeiro vislumbre do Rio Teixeira. O seu leito corre poucos metros abaixo de mim, entrevendo-se entre as copas das árvores. O barulho da civilização quase não chega aqui e por isso sei que o rio está ali também porque o oiço - um brando rumor líquido.
Trilho a pé um caminho até à margem. Fico tão imerso na natureza como se fosse eu próprio um seu humilde elemento, como a água do rio, uma pedra ou um ramo de árvore, todos nós minúsculos fragmentos da grande matéria universal. Aqui, o ruído e a brutalidade do mundo parecem realidades inexistentes. É como se escutasse uma sublime oração telúrica.
Os 13 quilómetros do Rio Teixeira separaram Aveiro e Viseu. Almoço já do outro lado desta fronteira natural, n’O Poeta. Levo para a mesa um semanário local pousado no balcão. Na página de classificados leio anúncios como “Garnizés Compram-se. Compro garnizés bonitos. Dois ou três machos e várias fêmeas”, “Vende-se Milho Em Rebordinho” ou “Procuramos senhora necessitada acima dos 60 anos, fisicamente estável. Sem vícios, livre, que queira viver e ajudar-nos nas tarefas domésticas em nossa casa, perto de Viseu. Aguardamos contacto para uma conversa construtiva e séria”.
Dirijo-me em seguida para a praia fluvial da Carriça, ainda em território viseense, e depois reentro no distrito de Aveiro para subir ao miradouro da Quinta do Barreiro, um ermo onde a Capela da Senhora da Paz repousa entre árvores frondosas. Daquele pico a visão à minha frente é ampla e desimpedida, perto da interceção do Rio Teixeira com o Rio Vouga.