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Han Kang e a escrita que desafia a vencermos os rótulos e as convenções!

Opinião

A 18.ª mulher, da lista dos 121 autores que já conquistaram o Prémio Nobel da Literatura, foi Han Kang, com o seu livro “Vegetariana”. E que fantástico livro este.

O primeiro pedido que vos faço é: por favor, não se deixem enganar pelo título, este é daqueles livros em que o título é uma pálida expressão da sua intensidade, pois os temas abordados e a forma disruptiva como são tratados ultrapassa – e muito! – uma mera questão de opções alimentares.

Sendo eu uma pessoa que, não obstante ser capaz de fazer muitas refeições vegetarianas, não me via a abdicar de uma boa posta de carne ou um peixe grelhado, para o resto da vida, torci o nariz ao título do livro. Mas a verdade é que, logo nas primeiras páginas percebi que o livro era muito mais do que um livro sobre uma opção alimentar. Logo no início fiquei rendida à sagacidade com que a autora vai anotando e desconstruindo alguns preconceitos e convenções sociais: o que se espera de uma mulher? O que pode fazer a felicidade do casal? E como jogam contra as mulheres tantas ideias pré-concebidas. Depois, fui ficando cada vez mais rendida à forma inteligente como Han Kang entrelaça na sua escrita a história do seu país e os traumas que deixou, os preconceitos culturais e o ser humano e a incapacidade que tem para romper com as convenções. Estes temas, na Coreia do Sul ou em qualquer latitude, têm a capacidade de me cativar porque são causas que me movem: lutar contra preconceitos e desconstruir convenções.

Han Kang é uma escritora sul-coreana, filha do também romancista Han Seung-won, e, depois de concluir a sua licenciatura em literatura, trabalhou durante três anos como jornalista, iniciando a sua carreira literária com a publicação de cinco poemas e só em 1994 – 30 anos de receber este justíssimo prémio! – iniciou a sua carreira como romancista, tendo nesse mesmo ano conquistado o Concurso Literário da Primavera de Seoul Shinmun, com o relato “A âncora escarlate”. No seu percurso, para além da atividade como jornalista, que lhe deu seguramente esta capacidade de síntese e o poder de observar o mundo que a rodeia, conta com poemas, romances e contos. É, pois, uma escritora com dimensão gigante e o seu romance “A vegetariana” já em 2016 tinha conquistado o Man Booker Prize.

O livro “A vegetariana” não é, como já vos disse, (apenas) um livro sobre hábitos alimentares, também não é (só) um livro sobre um determinado estilo de vida, nem (tão pouco) um convite ao feminismo ou à (apenas) um convite a que nos revoltemos contra as convenções ou estereótipos. É um bocadinho de tudo isto e toca em tantos e tão diferentes temas, de uma forma tao direta e assertiva, que prometo que vos proporcionará uma excelente tarde de leitura. Aliás, é fantástico como em tão poucas páginas a autora consegue mexer tanto connosco.

“Vegetariana” engana-nos com o título, pois não relata apenas uma mudança de hábitos alimentares. Aliás, esta grande mudança, numa sociedade onde a carne e o peixe na alimentação tradicional têm um papel tão importante, é a revelação de uma mudança mais profunda e a forma encontrada pela autora para nos falar sobre a condição da mulher na sua cultura, a relação entre a humanidade e a natureza, o impacto de uma educação opressiva e a força que as mulheres têm para tomarem as decisões mais inesperadas e assumirem o controle sobre a sua vida ou sobre a sua existência.

Não se enganem, no entanto, julgando que se trata de um manual de feminismo, este é um livro sobre a humanidade e sobre a forma como as nossas relações com os outros e com a natureza, nos impactam e tomam conta da nossa vida. Nem tão pouco se enganem acreditando que o facto de ser um livro que aborda a relação com a natureza, é um livro suave e repleto de beleza, pois é um livro muito forte e duro e que não deixa ninguém indiferente pela brutalidade com que nos confronta, sem eufemismo e sem contornar a dureza com que estes assuntos devem ser abordados.

A autora tem a coragem de abordar temas que não se circunscrevem à sua cultura e contexto, a começar pelo conforto e segurança na escolha de uma esposa que não se destaca e não cria conflitos.

O livro parte de uma premissa absolutamente interessante. A mulher mais banal que se possa imaginar, Yeong-Hye, uma mulher absolutamente normal, nem bonita, nem feia, uma mulher que “embora não tivesse nada de muito atraente, nada tinha também de repulsivo e, por isso, não havia motivo para que não nos casássemos. A personalidade passiva dessa mulher em que eu não conseguia detetar frescura, nem encanto, nem nada de particularmente refinado, servia-me na perfeição”, tem um dia um sonho – que nunca chega a ser revelado, e decide tornar-se vegetariana, deixando, em absoluto, de comer carne e peixe decisão que numa cultura onde a gastronomia tem uma presença grande de carne e peixe, vai contra aquilo que é a norma. Essa decisão repentina, mais do que surpreender o marido e a família, choca e põe em causa toda uma tradição e forma de estar e a serenidade e a “normalidade instalada” que o marido escolheu para a vida de ambos.

Na verdade, a decisão do marido de casar com Yeong-hye tem na sua origem o facto de este sempre ter preferido “uma vida mediana. Na escola, decidi andar com aqueles que eram dois ou três anos mais novos para poder ser eu a mandar, em vez de correr riscos juntando-me aos da minha idade; e, mais tarde, candidatei-me a uma universidade com base apenas na probabilidade de conseguir uma bolsa que cobrisse largamente as minhas necessidades. Por isso, fixei-me num emprego em que recebia um ordenado decente em troca do cumprimento diligente das tarefas que me eram atribuídas numa empresa cuja dimensão faria com que valorizassem inevitavelmente as minhas competências banais.” E é por querer esta vida mediana, que não surpreende, mas também não traz chatices, que o marido viu em Yeong-Hye a mulher ideal para casar. Por acreditar que uma mulher assim nunca lhe traria problemas na vida, pois as “mulheres bonitas, inteligentes, sensuais, filhas de famílias ricas – essas teriam acabado por perturbar a minha existência tão cuidadosamente ordenada.” Mas, a verdade é que os preconceitos e as ideias pré-concebidas não passam disso mesmo, de preconceitos e ideias que nem sempre se confirmam e às vezes se revelam completamente ilusórios. E, a verdade é que, depois do seu sonho, para além de Yeong-Hye ter decidido, de uma forma repentina e sem retorno, pôr no lixo toda a carne e peixe que tinha em casa e tornar-se vegetariana e, consequentemente, forçado o marido a viver de acordo com esse registo, todo o seu comportamento de mulher obediente e que acata e cumpre com todas as expectativas dos outros relativamente a si, mudou radicalmente.

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Conseguimos, com a evolução da história, destacar dois aspetos que podem estar na origem desta decisão, que ocorre após o seu sonho: por um lado, a sua vontade de se manter mais próxima da natureza e fazer parte dela respeitando-a mais; e, por outro lado, a necessidade reprimida de se rebelar contra a opressão em que sempre viveu e esta ideia de que teria que viver esta vida pacata e convencional de acordo com o que, social e familiarmente, se esperava dela.

Aliás, logo após esta sua decisão, o marido tenta pedir a intervenção da sogra e a família reúne-se toda para a tentar demover desta decisão e é aí, um dos momentos mais impactantes e duros do livro, que Yeong-Hye mostra que a sua decisão, para além de ser irrevogável, encerra em si uma manifestação de revolta contra a sua cultura, a necessidade de provar ao pai, que sempre castrou a sua opinião, que a vida era dela e ela tinha todo o direito de assumir as suas rédeas. Este é um momento impactante que revela a força de uma mulher de quem se esperava nada mais do que a obediência e a revelação de que nunca é tarde para fazermos prevalecer a nossa vontade... desde que haja a força interior para o fazer.

“- Idiota! – os seus lábios trémulos não param de repetir a palavra, enquanto lava a cara à frente do espelho. – Idiota!

É o teu corpo, podes tratá-lo como quiseres. É a única coisa em que és livre de fazeres o que quiseres. E nem sequer nisso te dão liberdade.”

A nova atitude de Yeong-hye faz com que o seu marido – que queria uma mulher e uma vida pacata e sem chatices – se divorcie e ela passe a assumir atitudes incompreensíveis aos olhos dos que a rodeiam e, neste caminho tortuoso, a irmã In-hye, com uma vida e forma de ser muito diferente de Yeong-hye, mantém-se incondicionalmente ao seu lado e tenta perceber a origem desta decisão, o que a faz questionar-se sobre a infância e juventude de ambas, sobre a relação que tinham com o pai e, sobretudo, sobre o facto de não ter conseguido proteger a irmã da autoridade e violência do pai. In-hye, ao mesmo tempo que se penaliza por não ter sido capaz de defender a irmã, percebe que ambas foram castradas e obrigadas a seguir um caminho traçado pela família e que a irmã teve a coragem, embora já na fase adulta, de se libertar do papel social que lhe impuseram e isso faz com que In-hye a admire muito.

Mas este papel de cuidar da irmã e sentir que é a única pessoa que se preocupa verdadeiramente com ela, quando todos se afastam por não concordarem com as suas opções de vida, desgasta In-hye e ela acusa esse cansaço, afastando-se da sua própria família. “Sabe que os cuidadores também têm de zelar pela sua saúde, não sabe?”

A relação das duas irmãs tem tanto de complexo como de inspirador, é um misto de amor, proteção, devoção, admiração com sentido de missão, mas sobressai sempre esta enorme admiração e reconhecimento de que a irmã, a dócil, ingénua e pacata Yeong-hye ter sido capaz de fazer o que ela nunca conseguiu, libertar-se dos padrões e dos estereótipos sociais. “Nem conseguia perdoar-lhe o facto de ter conseguido atravessar sozinha uma barreira que ela própria nunca conseguira transpor, tal como não conseguia perdoar-lhe aquela magnífica irresponsabilidade que permitira a Yeong-hye libertar-se de todos os constrangimentos sociais e deixá-la para trás, presa para sempre. E, antes de a irmã ter quebrado essas barreiras, ela nem sequer sabia que elas existiam.”

E no meio da dificuldade que tem em gerir a vontade da irmã de deixar de comer e abandonar a vida terrena, Yeong-hye não deixa de pensar em tudo o que a irmã lhe ensinou, a lutar pela sua liberdade, por muito tarde que possa parecer, e mesmo que ninguém acredite em nós, mesmo que essa liberdade possa começar por ser decidir o que se quer ou não comer. “A vida é uma coisa tão estranha, pensa In-Hye quando para de rir. Mesmo depois de lhes terem acontecido certas coisas, por mais horríveis que tenham sido as suas experiências, as pessoas continuam a comer e a beber, a ir à casa de banho e a lavar-se – por outras palavras, a viver. E, às vezes, até riem à gargalhada. E, provavelmente, têm os mesmos pensamentos e, nessa altura, devem lembrar-se melancolicamente de toda a tristeza de que, por instantes, se esqueceram.”

Acabei de ler o livro inspirada e emocionada com a força desta pacata mulher para romper preconceitos, questionar a autoridade, desafiar a família e lutar por aquilo em que acreditava, ainda que, inspirada por um sonho, porque a verdade é que todos temos sonhos, mas alguns deixam que eles nos inspirem e outros optam por acordar e deixar os sonhos guardados na gaveta do que gostaríamos de fazer mas a coragem não deixou.

E no meio da crueldade e dureza de alguns momentos, vamos sempre lembrar-nos de Yeong-hye como aquela que, sem que ninguém o esperasse, desafiou tudo e todos e lutou pelos seus sonhos e pela sua liberdade. Vale mesmo a pena ler, pelo menos este livro, desta grande escritora.

Parabéns Han Kang, o mundo precisa de mais escritores que nos inspirem e ajudem a libertar das amarras das convenções.

Boas leituras a todos e que estas venham acompanhadas de muitos sonhos!

 

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