Sobre o livro “Um Futuro para Aveiro” de Alberto Souto, lançado a par de “Do Tempo Tão Pouco”, no passado dia 15 de dezembro, muito mais do que estas singelas palavras haveria para dizer. Cento e uma ideias para uma cidade e território não é coisa pouca, tanto mais quanto o mosaico que criam, configura uma verdadeira visão sobre o modo como os pretendemos habitar.
Este livro é um ato de cidadania do mais elevado nível, e por isso, é também uma atitude de coragem pela exposição pública e de pertença e amor à sua comunidade, pelo desejo de debater e fazer florescer novas ideias, pelo modo crítico de ser e estar nesta imensa construção social que é o nosso território.
1. Todos somos urbanistas na ótica do utilizador da cidade
Falar de um livro de ideias para uma cidade e um território parece logo endereçar para uma matéria de especialidade em urbanismo para que, nesse quadro, sejam mais bem apreendidas ou até eventualmente, descodificadas. Porém, tenho sempre o cuidado, em conferências, encontros ou debates, referir que se o convite se dirige pelo meu contexto profissional de urbanista, então, qualquer um dos presentes na sessão poderia ser também convidado.
Sou do tempo em que nos curriculum-vitae se escrevia, quando chegava ao momento de ilustramos as nossas competências informáticas: “conhecimento de word e excel, na ótica do utilizador”, para concluir que todos aqueles que habitamos e visitamos cidades, todos os presentes neste auditório, somos urbanistas na ótica do utilizador. Deste modo, procuro colocar-nos, a todos, em pé de igualdade, para o debate que se seguirá.
Também tenho por hábito referir que a cidade somos nós. Os que a habitam, nela trabalham e a visitam. Somos nós, coletivamente, mas também o somos individualmente. Essa é uma das propriedades fundamentais das cidades: a de criar contextos coletivos, sem nunca negligenciar a dimensão idiossincrática de cada um dos seus habitantes.
A prova disso é que se solicitarmos às pessoas que descrevam a sua cidade, cada uma o irá fazer de forma diferente. É certo que haveria pontos comuns, mas o modo como, a ela, cada um se refere é distinta e própria. Deste modo, cada um de nós é uma cidade.
Poderíamos ir ainda mais longe, e solicitar, a um transeunte, a descrição do lugar por onde está a passar e, no regresso, repetir-lhe a pergunta. Certamente, perceberíamos que essa descrição teria outra abordagem, não, provavelmente, com alterações abissais, mas com pormenores que fariam a diferença do olhar e do sentir. Também, se o fizéssemos ao longo do dia, notaríamos que a descrição depende de muitos fatores que estão para além da cidade e que são os momentos pelos quais passamos, o estado de espírito com que nos encontramos. Assim: tristes, a descreveríamos de uma forma; cansados, de outra; alegres, de outra; ou até, num esplendoroso dia de sol, o faríamos de uma maneira; ou sob uma intempérie de outra. A conclusão torna-se então, assim, fácil: Não somos nós que estamos na cidade, bem pelo contrário, é a cidade nos habita, em todos os seus diversos momentos.
2. Pensar juntos
Um livro de ideias que são explanadas, que tem a coragem de sair do mundo interior do seu autor, é uma convocatória dirigida a todos, é um apelo a pensar juntos, é uma solicitação à receção de uma opinião, é induzir outras. Uma ideia não é um fim em si mesma, é um impulso para ousar debater e fazer acontecer.
É sobretudo um livro que quer nos fazer pensar juntos. Pensar juntos não é o mesmo que fazer debates, diálogos, tertúlias ou mesas redondas. Pensar juntos é “criar contextos de onde as ideias que partilhamos levem a pensamentos de cada um mais além do que cada um o poderia fazer por si mesmo” [i]
A importância das ideias sobre as cidades não é o da gratuidade de propor o novo pelo novo porque, tem sido, justamente, o afã das tentativas, absolutamente falhadas, de mostrar a grandiloquência da obra pela obra, mesmo que no vazio da sua proposta, que tem descaraterizado e até mutilado, pedaços da sua história, de uma boa parte das cidades portuguesas. Já nem a ignorância justifica que não se entenda a morfologia urbana, isto é, as formas das suas ruas, os modelos das suas avenidas, o desenho das suas praças, como elemento essencial da compreensão e vida da cidade. A morfologia urbana é tão património quanto o edificado, marcada pelo tempo da conceção da cidade.
Nas cidades, “o novo pelo novo”, constituem os desenraizamentos contemporâneos. Outrora, sociedades totalitaristas, transferiam parte dos seus habitantes para outras cidades mudando-lhes, radicalmente, de imaginários, familiares e amigos, para um melhor controle das suas vidas e a preservação do poder instituído.
Na atualidade já não é possível a imposição desses movimentos em massa, mas muitas destas decisões permanecem sob formas mitigadas. Assim, como já não se consegue transferir, os habitantes para outros lugares, como forma de os desenraizar da sua cultura e com isso retirar-lhes a identidade, então executa-se o inverso. Retira-se a cidade das pessoas, através do apagamento e cancelamento do desenho urbano histórico, provocando o mesmo sentimento de perda identitária. Isso é possível, pelas alterações à morfologia urbana histórica, pelo desnudamento arbóreo das ruas, avenidas e praças, pela criação de lugares asséticos e vazios, pela adulteração da paisagem, pela tentativa de troca de referências, procurando, precipitadamente, construir outras, pelo apelar de novo tudo o que se faz, tal como epítetos “nova cidade”, “nova feira”, como, em tempo se utilizou “novo-estado”.
Assim, importante e, simultaneamente difícil e sensível é criar ideias que integrem o passado relevando o seu papel para o futuro e criar um futuro que jamais negligencie o passado. Mas o respeito pela cidade, pelo território e pela cultura das suas gentes, não tem outro caminho.
3. A cidade não é redonda
As cidades não permitem que se lhes dirijam de forma redonda porque sabe que os piores momentos das suas vidas derivam de serem pensadas através de banalidades, clichés ou lugares-comuns. Se a terra é redonda, ainda que achatada nos polos, as cidades não. Por isso não aceitam, nem discursos, nem números, nem ideias redondas. Por melhor que elas fossem, dificilmente admitiriam vinte e cinco ideias ou cinquenta, ou cem. Mostrar-se-iam como um quadro fechado, teriam em si um sentimento de angustiante claustrofobia.
Cento e uma ideias é, então, arrombar o espaço em que por vezes querem conter as cidades. É tornar possível a nossa participação, quer por adesão, quer por adição. Deste modo, é aquela “uma”, seja ela qual for, que está para além da centena, que faz a diferença e nos abre a porta para entramos neste encontro de vontades e desejos.
De facto, ao fugir a um quadro fechado que todos os números redondos parecem definir e como poderia acontecer com “cem”, a “uma” quebra o fechamento e incentiva, todos, poderem continuar com a cento e duas, três, quatro e assim sucessivamente. “Cento e uma”, ao contrário de “cem”, é um campo aberto, a abertura de novas possibilidades, a amarração para o modo, como todas as outras que o livro estimula ao leitor, poderão vir a surgir.
4. A cidade não se constrói, concebe-se
As ideias nascem do casamento entre o sonho e o desejo. As ideias são a cidade antes de nascer. A cidade é um organismo vivo, com metabolismo próprio. Como qualquer organismo vivo, não se constrói, concebe-se pelas ideias das mulheres e dos homens. Por isso importa valorar a imaginação. Para que as ideias possam ir mais além do que o repetitivo quotidiano e conceba melhores futuros.
Mas a sociedade contemporânea não lida bem com a imaginação, creio mesmo que a procura reduzir ao mínimo. Talvez por isso, o sistema de ensino e, posteriormente a vida quotidiana, nos vai retirando a imaginação com que nascemos e percorremos a infância, antes de assumirmos deveres ditos sérios, para com a sociedade. A excessiva padronização dos múltiplos sistemas, desde a escola ao trabalho, encerra em si um mecanismo de redução da imaginação.
Na verdade, Laborinho Lúcio refere que gosta “de partir do princípio de que não há na escola nenhum problema de indisciplina, o que há na escola é um grave problema de disciplina... a escola, (como a sociedade, digo eu), não tem como missão principal explicar, tem sim, como desiderato fundamental, implicar... terá de desenvolver pensamento crítico” [ii]. Ora é, exatamente este modo de ser e estar que o livro “Um Futuro para Aveiro” nos proporciona.
Com efeito, facilmente se comprova a desigualdade criada e os poderes de uma escola construída de cima para baixo, quando uma menina ou um menino, leva trabalhos para casa, mas, em sentido inverso, não pode levar uma bola para a escola. Esta falta de reciprocidade de valores, leva a perdas de imaginação, pelo padrão que institui.
Hoje, quem conserva a imaginação é um resistente, é alguém que não desiste de nós, que nos ativa, que nos faz criar desejos que julgaríamos há muito atirados para o lixo da nossa própria história.
Urge a necessidade de pensar a diferença, ir mais além, criar horizontes, atribuir futuros ao passado, não por mimetismos, mas pela arte de bem pensar. Não é do meu agrado a expressão “pensar fora da caixa”, prefiro a expressão do poeta Manuel de Barros “voar fora da asa” e Alberto Souto cumpre esse desígnio humano de propor o realizável, no quadro do que a cidade bem merece: expressão da capacidade de sonhar e ousar concretizar, ultrapassando, desta forma, um provincianismo castrador, que parece ter invadido a nossa história e que tão contrário é à histórica audácia e inteligência das suas gentes.
5. A cidade do desejo
Um outro dos nossos grandes problemas é a infinita distância que atribuímos ao espaço pessoal que está entre o desejo e o ensejo. Um afastamento que representa mais receio concretização dos sonhos, do que impossibilidade real de os fazer acontecer. Existe uma espécie de autorrepressão de que não conseguimos encontrar uma origem, mas que incompreensivelmente, ou talvez não, habita a espuma dos dias e nos imobiliza.
Mas viver não é como morrer. Viver é ainda ser possível. Por isso temos de diminuir o espaço ou o vácuo, mais mental do que real, entre o ensejo e o desejo. Aproveitar as oportunidades para fazer acontecer e caso não surjam de modo óbvio, fazê-las vir ao nosso encontro.
Fazer com que os sonhos não se tornem inatingíveis e realizá-los, tal como o fez aquele personagem que, ignorando, porque ninguém lhe dissera, a impossibilidade do que pretendia concretizar, então o executou, com a maior das naturalidades. Como não sabia que era impossível, fê-lo.
Há medos a mais nas cidades e nos territórios quando se trata de concretizar ideias. Mia Couto refere que, nas sociedades, há mais medos do que razões para ter medo. Assim, o importante é ultrapassar determinadas perceções, incutidas por terceiros, que nos faz recusar a tentativa de concretizar.
Tal como o urbanismo, é uma disciplina perdida algures no século passado, também as utopias desapareceram deste século, mas elas são importantes. São elas que nos fazem caminhar. Como refere Eduardo Galeano, “Ela está no horizonte – diz Fernando Birri – Aproximo-me dois passos, ela afasta-se dois passos. Caminho dez passos e o horizonte fica a dez passos de distância. Por muito que caminhe, nunca a alcançarei. Para que serve a utopia? serve para caminhar.” [iii]
6. A Cidade Polis: política, liberdade, democracia
Cidade é Polis que, desde a antiguidade grega, significa política, liberdade, democracia. A cidade talvez seja a maior construção societal que mulheres e homens criaram para viver em comunidade.
Como nos diz Jordi Borja, “A cidade que se vive, que se recorda, que se projeta, é também uma cidade real em que tudo é teoricamente possível: máxima informação e mobilidade, múltiplas ofertas culturais e de consumo, infinitas possibilidades de relações sociais, grande diversidade de atividades e de oportunidades de trabalho... são as liberdades urbanas. Mas na prática, o próprio desenvolvimento das cidades nega as liberdades que oferece” [iv]
De facto, a mesma cidade que, por conceito, nos devia oferecer essa multiplicidade de possibilidades, é a mesma que nos retira liberdades essenciais, como o direito universal ao espaço público, tal como a problemática das pessoas deficientes ou incapacitadas no acesso a todos os bens da cidade, provoca fenómenos de segregação social e habitacional, pobreza crescente, ineficiência dos sistemas de transporte, violência viária, entre outros.
A tendência civilizacional parece estar com preocupantes involuções. Uma espécie de Darwin invertido. Começamos por ser, nas cidades, seus cidadãos, que se refere ao exercício da cidadania na cidade, depois, face à prestação de serviços pagos que passou a prestar, passamos a seus utentes e, atualmente, face à mercantilização total das urbes, somos seus clientes. Então, como qualquer cliente, há imensos produtos importantes para o quotidiano e para a qualidade de vida que muitos não conseguem adquirir face à inflação, à gestão expectante de terrenos e habitações, à distinção das qualidade dos produtos alimentares a que cada um pode adquirir.
Urge, por isso, regressar ao conceito fundador da cidade, como polis. É a ideia acima de todas as ideias. A ideia mãe de todas as ideias. O regresso à dimensão de sociabilidades urbanas que traduza esse espaço de liberdade que a cidade, por conceito, nos deve oferecer e nos torne, de novo, seus cidadãos.
7. A cidade ideal
Quando nos assolam ideias para a cidade, sempre pretendemos aproximá-la do nosso conceito de cidade ideal. Então podemos realizar dois exercícios.
Um, mais cosmopolita, poderíamos falar como António Pinto Ribeiro, em que a sua cidade ideal é uma composição ou mosaico dos sítios que ele amou e admira, é um somatório de grandes lugares. “Eu não tenho uma cidade ideal. A minha cidade ideal é uma cidade de cidades, uma colagem de lugares. É assim que eu vejo o rio Tejo e as varandas que para ele dão ladeando o arranha-céus de Hong-Kong, em especial o Banco da China de Li Pei, na margens do Mar das Pérolas; O Banco faz esquina com a rua das livrarias do Rio de Janeiro, a mesma do China Club de Paris que, nesta minha cidade, fica defronte dos Jardins do Luxemburgo, no centro os quais se encontra o Café Pullmans de Utrecht, com vista para a 9 de Julho de Buenos Aires, morada do Museu da Fotografia de Arles, cujo portão abre para as termas de La Garriga, ao lado das quais fica a Biblioteca de Nova Iorque na Rua 42, perpendicular à Avenida Eduardo Mondlane do Maputo, lugar do colorido mercado de Hanói, vizinho do Mercado de Barcelona e da Piazza de la Signoria defronte da esplanada do Sporting Clube de Beirute, de onde se avista o Mediterrâneo."