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A Estrada da Luz

Opinião

Ivar Corceiro

Quando chegava o verão aquela estrada transformava-se num festival de luz irreconhecível mesmo para quem a percorria quase diariamente. Era uma longa reta entre duas cidades, a de Aveiro e a da Gafanha, que ganhava cor como se alguém tivesse pintado de aguarelas um velho desenho feito a lápis de carvão. O vento serpenteava de azul as inúmeras torres de sal que povoavam o interminável espelho de água e as mais diversas aves desenhavam improváveis trajetórias no céu.

Próprio de uma criança que ainda não tinha chegado à primeira dezena de anos passados neste planeta, eu acreditava no destino. Assim, quando observava aquele festival de Verão sentado no banco traseiro da velha Vauxhall Viva do meu avô, eu sabia que era ali que tinha que estar e não noutro sítio. Percorria a estrada calado, embalado pelo motor ronronante do automóvel, e num desses silêncios contemplativos acabei por a batizar de Estrada da Luz.

Houve um dia qualquer em que o meu avô encostou para ajudar uma família cujo carro tinha avariado exatamente a meio da Estrada da Luz. A minha memória, mais de quarenta anos depois, só se lembra de um motor fumegante e de um jovem casal com uma filha sardenta. Vinham de Setúbal. Depois de algum tempo a analisar a origem e o cheiro do fumo, o meu avô acabou por decidir que o melhor era ir à Gafanha chamar um mecânico conhecido para resolver o problema, o que depois de alguma insistência da minha parte para ficar ali me deu pelo menos uma hora de liberdade. Pela primeira vez não estava apenas de passagem naquela estrada.

Eu e a Sandra, assim se chamava aquela minha efémera amiga, acabámos por nos afastar do local, primeiro atraídos por uma série de pássaros que nos fugiam do alcance e depois pela própria curiosidade natural de duas crianças sobre um local desconhecido. Não sei o que ela sentiu, mas para mim foi como se estivesse a entrar dentro duma pintura qualquer de que gostava muito e que já conhecia de cor.

Da mesma forma que nos perdemos nos nossos pensamentos, perdemo-nos no espaço e no tempo. Já ao final da tarde fomos encontrados por dois soldados da Guarda Nacional Republicana que, alertados pela família, nos tinham procurado com um ar grave e sério em cada palmo de terra, lama, água e sal. Estávamos bem e despreocupados, de mãos e alma dadas, sem sequer percebermos que o mundo se podia preocupar com a nossa existência.

Nunca mais vi a Sandra e suponho que ela nunca mais visitou o local com tal pormenor, mas eu sim. Durante mais de quatro décadas os difíceis e inigualáveis caminhos das marinhas de Aveiro tornaram-se para mim um local de passeios regulares, onde mesmo estando sozinho a solidão parecia terminar. Durante todo esse tempo, tão longo quanto tão curto, vi a cidade de Aveiro mudar lentamente a sua silhueta, uma autoestrada desenrolar-se repentinamente ao lado da Estrada da Luz tornando-a mais pequena e exígua, uma linha de caminho de ferro erguer-se da água e as torres de Sal extinguirem-se como se fossem flores num campo estéril.

Dum lado e do outro tudo mudou bastante, mas tal como eu nunca mais vi a Sandra, as duas extremidades desta estrada nunca se encontraram totalmente. Foram quarenta anos sem um simples acordo para ter verdadeiros transportes intermunicipais, sem uma política comum de turismo ou habitação, sem uma igualdade identitária. Enfim, sem um abraço. Aveiro e Ílhavo nunca deram verdadeiramente as mãos nem a alma e continuam tão longe e tão perto uma da outra. Sempre que ali volto penso nisso e lembro-me desta história.

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