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As pessoas do Evaristo

Opinião

Cada pessoa é dona das suas especificidades. Das suas pequenas coisas. O que mais me preocupa não é o barulho. É o silêncio que resulta do vazio deixado pelas pessoas.

A Adega do Evaristo vai fechar. É um facto indesmentível que nos (re)lembra a perenidade.

Já muito foi escrito sobre essa inevitabilidade. Mas a mim não me preocupam os lugares. Nunca me preocuparam. A mim o que me toca, o que me inquieta, ou o que me aquece a alma nos dias frios, são as pessoas. As palavras. Os sentimentos.

Não sou – seria impossível – ser um cliente de sempre do Evaristo. Não conheci quem o fundou e quem nele trabalhou nos primeiros tempos. Mas faço parte do Evaristo – e ele de mim – há algumas décadas. E apesar de saber que nunca mais vou comer a Vitela à Vouga, os Escalopes de Vitela, o Bacalhau com Natas, as costeletas de Borrego de sabor único e – por estranho que pareça – aquele maravilhoso arroz de Tamboril, nada disso me vai fazer falta. Mesmo.

Assim como o espaço. Convenhamos: a Adega do Evaristo é o espaço mais incongruente e esquisito que existe enquanto restaurante. Ou adega. Uma enorme sala disforme, com mesas colocadas da maneira mais aleatória possível, dividida em duas salas decoradas de forma tão difusa quanto estranha, mas que respeitam as memórias de quem lá passou. E deixou uma história contada em forma de tela.

Na outra sala, uma espécie de corredor apertado, aquelas mesas, escondidas e refundidas nas costas do balcão, onde para conseguirmos comer, temos de estar com as pernas encolhidas, esperando que quem sai do balcão não se desequilibre, ou que quem vem com os sacos cheios de comida do takeaway não se embrulhe e nos acerte com qualquer coisa.

Eu sei, é tudo isto que faz do Evaristo um lugar especial. Sem dúvida. Não há – nem haverá – nada igual. Nunca mais. Mas não é o Evaristo que me vai fazer falta. São as pessoas.

Muito já foi escrito sobre o encerramento do Evaristo.

Mas para mim falta o essencial. Um restaurante que tem a cozinha aberta e disponível para quem quer entrar não é apenas mais um, entre tantos outros que existem em Aveiro. Que vêm e que vão, como a água do mar. O Evaristo é, sobretudo, um lugar de afetos.

Nunca escolhi a comida à mesa. Sempre fui à cozinha. E sempre o fiz após escutar as indicações sábias do senhor Agostinho. Saber que ele, quase todos os dias do ano, se levantava ainda de noite para escolher os produtos para preparar e cozinhar, ou colocar a assar, nas tigelas de barro, a Vitela à Vouga, só faz – e fazia – com que lhe desse mais valor. Mesmo doente – até ao limite – manteve-se firme frente ao fogão, para que nada nos faltasse.

E quem fala do Agostinho, fala da dona Fátima. Só chegava à cozinha perto da hora de começar a servir as refeições. Mas já vinha de horas e horas de labuta. Os dois falavam com um orgulho indisfarçável do filho e das suas conquistas diárias, que os fazia encher o peito de alegria. A dona Fátima e a sua maneira peculiar de servir as travessas e os pratos cheios, nunca me sairão da memória. Nem a forma carinhosa como falavam – todos eles, sem exceção – da minha Joana. Joaninha para eles. Do “reino” da cozinha, apenas lamento não saber o nome da senhora – pequenina – que lá trabalha. Das poucas pessoas que conheço que conheceu a minha mãe, por ter trabalhado em minha casa quando eu era três reis de gente. Não sei o nome dela, mas sei as feições. E quando fecho os olhos, vejo-a.

Quando falava com algumas pessoas que casualmente iam ao Evaristo, quase todas elas falavam da “simpatia” peculiar de quem os atendia ao balcão e à mesa. Lá lhes explicava que era feitio e não defeito, até porque nenhum estabelecimento de porta aberta, a mantém escancarada uma vida inteira, se não for diferenciado.

O dono do balcão é o senhor José. De um sentido de humor especial, que nos deixa sempre a pensar se está a falar a sério ou não. De uma forma circunspecta – às vezes fechada – lá nos diz os pratos do dia. Da mesma forma que responde a todos os colegas, quando, pela abertura da cozinha, lhe pedem as bebidas ou o café. Mas aquele balcão tem tantas histórias para contar, com clientes de todos os dias, que não passam sem a palavra assertiva do senhor José. De um profissionalismo irrepreensível, nem com tantas pessoas a pedir comida, a conta para pagar ou a perguntar qualquer coisa, perde a calma. Uma calma que – às vezes, assumo – me incomoda.

Eu sei que o senhor Alberto quis “acertar-me o passo” algumas vezes. Eu percebo. Mas aquelas camisas estavam sempre demasiado perfeitas dentro das calças, mesmo a pedir que as puxasse para fora. Calma senhor Alberto! Era só uma vez de vez em quando. Antigo central dessa distrital de pelados e de balneários empedernidos, o Alberto tinha sempre uma palavra a dizer, uma pergunta a fazer. Se estava tudo bem. E uma história para contar.

O Armindo e a sua forma peculiar de dizer as coisas, falando das notícias da televisão, sempre com observações mordazes e comentários de duplo sentido. Quando se colocava ao alto, ao nosso lado – meu e da Joana – a falar sobre o jogo do Beira-Mar do domingo anterior. Eu sei que ele teve orgulho quando treinei o clube dele. E quando na bancada me chamava e falávamos ali mesmo, no final do jogo. E era recíproco Armindo, pode acreditar. Assim como a defesa férrea dos tempos áureos da Sociedade do Recreio Artístico.

Eu sei. O Evaristo vai fechar. Teria de ser, um dia. As pessoas envelhecem. Querem paz e sossego. Querem usufruir. E fazem bem. Trabalharam muito. Muitíssimo. Muito mais do que deviam.

Mas não é o restaurante que me vai fazer falta. É o Agostinho. A Fátima. O José. O Alberto. O Armindo. A senhora de quem não sei o nome. As pessoas. De quem gosto muito. E que sei que também gostam de mim. De nós. É delas que vou sentir saudades.

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