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“Matias, houve um golpe de Estado, em Lisboa”

Opinião

 

 

Tenho muito presente na minha infância as histórias que o meu pai me contava - a mim e ao meu irmão - de como tinha recebido a notícia do 25 de abril e como tinha vivido os dias que se seguiram. Foram muitas as histórias que o meu pai me contou dessa altura e, a verdade, é que os relatos que vamos ouvindo da história, não nos contam apenas os factos, transmitem-nos também as experiências e os sentimentos daqueles que viveram esses momentos.

O meu pai combateu na Guerra do Ultramar e estava na Guiné quando se deu o 25 de abril e, em pequena, recordo-me de lhe perguntar muitas vezes como tinha aceitado ir para a guerra se não concordava minimamente com ela e porque não se tinha recusado a fazê-lo.

O meu pai, com a paciência que ainda hoje tem para a mania que eu ainda hoje tenho de querer que os outros vejam o mundo como eu, sem perceber que os contextos são diferentes, explicava-me, com a maior das calmas, que “não tinha tido alternativa” e que “era o seu dever e se limitou a respeitá-lo”. E que, apesar de ter ido, naturalmente, contrariado para a Guerra, não tinha ido para um dos piores sítios. O meu pai é, deliciosamente, uma pessoa que tem sempre a capacidade de encontrar aspetos positivos onde todos só veem coisas más e, por isso, e apesar dos relatos de alguns episódios muito difíceis, sempre nos relatou que também guardava boas memórias da Guiné. Da vida que lá tinha, do que lá comia e que ainda hoje tem saudades e também de algumas pessoas que conheceu. Ainda hoje penso que foi ele que me ensinou a “tirar sempre o melhor do pior, mesmo que, por vezes, pareça difícil”.

O meu pai é uma verdadeira enciclopédia sobre o 25 de abril, não há livro que não queira ler sobre o tema e não há personagem ou acontecimento que não conheça e, por isso, e pela forma como fala dessa altura e por tanto que nos transmite, foram muitas as conversas, inicialmente comigo e com o meu irmão e agora com os nossos filhos, que teve sobre o 25 de abril e a sua importância para os portugueses.

Com ele aprendi, também, a valorizar e a honrar a liberdade, a nunca a dar como adquirida, mas sim como uma conquista que implicou muitas vidas e sacrifícios e como um patamar da evolução social que não podemos permitir que se regrida.

Quase a festejar 50 anos deste evento que marcou a história do nosso país, foi muito bom, agora adulta, voltar a perguntar ao meu pai como tinha vivido o 25 de abril e que mudanças a revolução operou no nosso país e é essa experiência, tão pessoal, mas tão real, de quem estava no palco da guerra, que gostava de partilhar convosco aqui.

O meu pai relata a vida dos jovens como ele em Portugal, antes do 25 de abril, como uma vida com muitas restrições e limitações e em que a ausência da liberdade estava presente nas mais diversas áreas. Empregos precários, acesso limitado à cultura e ao ensino, limites na via pública (com quem estavam e o que diziam) e muitas outras dificuldades. Todavia, também consegue reconhecer que ele não seria dos que vivia em maiores dificuldades, porquanto, estando habilitado com um curso médio e a viver em Aveiro, conseguiu enveredar por uma carreira muito boa, não obstante a dificuldade que os jovens não residentes em Lisboa, Porto ou Coimbra tinham, na altura, em aceder a um curso superior, pois também a educação e, sobretudo, o acesso ao ensino superior não estavam ao alcance de todos.

Como referi em cima, o meu pai já estava empregado e a namorar com a minha mãe quando foi chamado para ir lutar na Guiné e, aí chegado, encontrou um local “mais ou menos pacífico”, mas, atento como sempre foi, refere que já se ouviam alguns rumores de que alguma coisa iria acontecer. Primeiro, deu-se a “Operação Mar Verde” - a invasão das tropas portuguesas à Guiné Conakry, em novembro de 1971 - e, mais tarde, em 20 de janeiro de 1973 o assassinato de Amílcar Cabral, seguido da revolta das Caldas da Rainha, em 16 de março de 1974, que precedeu a revolução dos cravos. A insatisfação estava instalada e saía à rua. E a revolução era inevitável!!

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Quando se deu a revolução do 25 de abril o meu pai estava de serviço. Era o sargento de dia, no comando chefe em Bissau, e foi acordado às 6h00 da manhã, pelo oficial dia, que chegou esbaforido e muito satisfeito. Disse-lhe: “Matias, vamos já embora para a metrópole, houve um golpe de Estado em Lisboa”. Esta notícia apanhou-o semi desprevenido, pois já se esperava uma revolução, e foi recebida com uma enorme alegria, mas, ao mesmo tempo, com a pergunta do “e agora??”, “o que fazemos agora?”. Só se lembrava que tinha férias marcadas para dia 27 e, na verdade, acabou por só conseguir regressar a Portugal – um Portugal livre e muito diferente daquele que tinha deixado – uma semana depois da revolução.

Esta semana de espera para regressar à metrópole só aumentou o seu nível de ansiedade e curiosidade e, quando chegou, apesar do clima de instabilidade e revolta que ainda fervilhava em Lisboa, no resto do país ainda não eram muito percetíveis as consequências da revolução.

Entretanto, regressou novamente à Guiné, e só em outubro, quando regressou definitivamente e após dois anos a viver no ultramar, é que me refere que constatou muitas e profundas alterações com uma liberdade que as pessoas estavam a descobrir e à qual se estavam a tentar adaptar. Conta que, desde esta altura e até 25 de novembro de 1975, a liberdade conquistada estava a ser festejada e exercida com a loucura de tudo o que é o oposto ao regime anterior e, talvez por isso, tenha levado a alguns excessos. Só com a Crise de 25 de novembro de 1975 – a movimentação militar por parte das Forças Armadas Portuguesas que conduziu ao fim do PREC (Processo Revolucionário em Curso) – é que a democracia representativa estabilizou em Portugal e a liberdade e as conquistas do 25 de abril se consolidaram e os excessos se foram mitigando.

A forma como o meu pai viveu o 25 de abril só pode ter a seguinte conclusão: estes 50 anos permitiram que o nosso país crescesse ao nível dos países europeus mais desenvolvidos e jamais estaríamos neste patamar sem a Revolução dos Cravos.

Muitas e inegáveis foram as conquistas do 25 de abril, o país cresceu economicamente e a qualidade de vida e acesso a bens como a educação, saúde, habitação, rede de abastecimento de água e saneamento, entre tantos outros, só foram possíveis por causa a Revolução. Todavia, não nos podemos esquecer que vivemos numa das democracias mais jovens da Europa e se 50 anos são tempo suficiente para percebermos a importância da liberdade, mas também são, simultaneamente, tempo insuficiente para que todos, sobretudo os mais novos que não têm o conhecimento do passado e não valorizem esta conquista como deve ser valorizada, percebam e interiorizem a responsabilidade que tem que estar associada ao exercício da liberdade e os limites que as nossas liberdades individuais têm numa sociedade que se quer respeitadora dos direitos de todos.

A festejar 50 anos de um país que acordou para a liberdade e para os direitos fundamentais em 25 de abril de 1974, agradeço ao meu pai o que fez por Portugal e tudo o que me ensinou através do seu olhar sobre o 25 de abril: “tirar sempre o melhor do pior” e acreditar que haverá sempre dias melhores e coisas que, quando menos esperamos, surgem para compensar um bocadinho os nossos sacrifícios. A forma como valorizo e prezo a liberdade, a minha e a dos outros, e o sentido de responsabilidade com que procuro exercê-la, também o devo, em parte, a algumas destas histórias, tendo também aprendido a valorizar sempre a história, porque com ela aprendemos como se constrói um mundo melhor, mais justo e mais respeitador dos direitos de todos, mas também ganhamos conhecimento e a perspicácia para perceber onde se escondem as armadilhas da democracia.

A ti, que os outros conhecem como Manuel Duarte Matias, mas que para mim tens o melhor nome de todos – PAI - agradeço-te todas as lições e valores que em mim foste incutindo e tudo o que aprendi com as histórias da tua vida.

 

* Filipa Matias Magalhães, habitualmente a bookgirl, mas hoje no papel de uma filha babada e muito agradecida por tudo o que o pai lhe ensinou!

 

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