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De Aveiro, com amor

Opinião

Um dia também ele ficará lá para trás, na neblina. Os olhos de cocainómano quedarão baços quais os dos cegos e a voz adamada sussurrará apenas o fino fio de água que corre lento na fonte de pedra, o que sobra do ruído brando que serpenteia as rochas da serra na secura do verão longo e escaldante.

Quedara-se a ver o mar, que lá não estava, somente a parede branca, levemente amarelecida no rebordo junto do teto. Estaria sentado na cadeira de lona de riscas vermelhas, recostado, aguardando que o tempo fizesse o seu trabalho. A morte não precisa de trazer mandato, de invocar qualquer artigo legal ou de fazer um estudo prévio. “Amigo, é a tua vez!”.

A gadanha ceifará a vida, indiferente à vaidade dele citar a sua heroicidade nas atas, de fazer o autoelogio no diário e de tipografar o nome nas placas, a imitação humana dos animais machistas que marcam o território urinando nas extremidades.

Os seres humanos que agem para ocupar lugar no livro de história, deviam prezar o exemplo do cachorro que se diverte sozinho, irrequieto, desinteressado da figura na cadeira ao lado, essa em que agoniza o Padrinho. Perecerá solitário, esquecido, abandonado pelas gerações seguintes. As que na visita familiar e forçada ao cemitério desconhecem os feitos do falecido e não reconhecerão o seu rosto na fotografia a ladear o tecido sedoso que aconchega o caixão fúnebre, o esquife, mero cubículo de pau vendido por um cangalheiro trocista, que assegura, em claro fingimento, que a qualidade da madeira protege o cadáver na viagem para a eternidade.

O atrevimento dos dentes centrais cimeiros, com o ímpeto de saírem da boca, ascendem sobre o lábio inferior, eles prometem um crânio medonho, uma ossatura quiçá ridícula, a fazer rir os miúdos que estudam a anormalidade na aula de anatomia humana. Por sua vez, as larvas protestarão pela fraca refeição que provém do corpo magro. Desde que lhes serviram Nosferatu, o vampiro esquálido, os vermes não almoçavam tão fraca porção. “Lá pelas 3h vamos ter fome”, desabafavam tristemente.

Diz-se que o corpo humano perde 21 gramas logo após o suspiro final. Supostamente, o peso da alma. Seja a de uma pessoa corajosa, seja a de um medroso. Uma medida que não muda com a robustez ou, no inverso, a pequenez física, avessa também a contabilizar a bagagem da consciência.

A existir, o espírito será esquivo, invisível, intangível, indetetável pela tecnologia disponível. Talvez seja a parte sobrante, a que vai prestar as derradeiras contas a Deus. O Senhor que decidirá, então, puni-lo com o flagelo da queimadura perpétua nas chamas do inferno ou, antes, abençoá-lo com o repouso nos jardins do paraíso.

“O pecado da soberba tomou-te para si. Agiste sobre a sua instrumentalização. Fez-te acreditar ser juiz sem que soubesses que para julgar é necessário e fundamento ouvir as partes envolvidas. Sem haver contraditório, uma sentença que determine ‘um marginal, um delinquente’ é uma rematada falsidade. E Deus é verdade. A ira que revelaste meses, anos, a fio, faz de ti, também, um mau indivíduo. Criaste um plano sórdido para vingança pessoal e usaste indevidamente um poder democrático e de Direito para o consumar. Homicídio de carácter voluntário, premeditado, penoso e cruel. Agrava a circunstância a forma dissimulada, diria covarde, do processo de assassinato. Não te revolve as entranhas a noção de que estavas em superioridade hierárquica e que é feio e reles o abuso de poder, o assédio moral a um súbdito? Quem tu pensas que és? Já viste as feições que tens quando defecas? Se és um tolo que se supõe louvado precisas de humildade. A minha decisão, é óbvia, sem recurso. Se irritares muito os teus comparsas mando aumentar a temperatura do forno. Agora, desaparece, baza daqui meu!”.

Ele foi-se para a carreira e nós ficámos aqui a inalar a maresia, a droga vital para quem aqui nasceu. Nós, os aveirenses, bem sabemos.

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O universo continua em expansão e esta terra limitada a um pequeno planeta, uma bola furada, sem movimento de rotação, a cereja da vaidade que não tem bolo em que se acomode. Plantaram caixotes do lixo para não esquecermos o seu cheiro. Escarram-nos o nome para maldizer os genes e sujar toda a família que fomos aqui, tantos homens e mulheres há séculos nas ruas de Aveiro. A perfídia que visava submeter o sujeito ao exílio local, ao paradoxo de se refugiar no chão em que nasceu, definhar socialmente às mãos do torcionário de pacotilha, do invasor circense e dos seus animais de companhia adestrados.

Abriu o livro que ela deixara no banco de trás: “Ela recolheu a bagagem, olhou em redor, caras estranhas, passageiros desconhecidos, vidas em trânsito. Ele ficara a delinear o plano para assassinar o monte de fezes engravatado, a planear a vingança pelas humilhações sofridas, ficou a consolidar o intento, lembrando a covardia do sacana de voz efeminada e grávida do amor por si mesma, mastigou o argumento moral para perpetrar o crime e aguentar com felicidade os anos de prisão. Podia rir-se daquele lixo de telhado de palha, o curioso caso do verme a servir de refeição para as larvas, livrava a humanidade da maldade vaidosa vestida no fato apategado de domingo do construtor aldrabão de aldeola, crueldade agora deitada na urna com destino ao funeral e a perder-se na voragem errática da eternidade cósmica. Espetar-lhe um balázio na testa seria rápido e menos prazeroso do que desfazer-lhe os ossos com o taco de basebol, ouvir o estafermo ganir enquanto lhe rebentava as rótulas, escutar o estampido das costelas a partir, pisar-lhe as falanges até ficarem moídas em pó, que prazer, gáudio! Estava a ficar doido, o que lhe agradava, a vida de otário tornara-se na refeição sensaborona do restaurante de hipermercado que acolhia ao domingo as famílias envergonhadas da miséria em que haviam caído”.*

Devolveu o volume ao assento e optou pelo jornal local, que lhe interessava menos que a folha promocional das costeletas de porco e dos bronzeadores de pele. Lembrou a servilidade que ofereceu ao homicida o espaço de envenenamento pela notícia, submissão e cumplicidade que terão na vergonha da cumplicidade do assassinato da honra e da dignidade a autopunição.

Comeu as uvas que trouxe da frutaria, sorveu a carne sumarenta do bago, a grainha que ficara na boca, como um incómodo, cuspiu-a para fora, para longe.

 

*In, “Coral da Polinésia – As Narrativas do Mar Insone”, Virgílio António Nogueira. Cadornel, editora - Aveiro.

3 Comentário(s)

fernanda tavares
17 ago, 2024

muito bem, como sempre! parabéns!!

pedro
17 ago, 2024

maravilha ouvir-te e, ainda mais, ler-te. cáustico, corrosivo, inquietante e, talvez por isso, com muita verdade. dá-lhe, continua a ser bravo! abraço!

maria joao
16 ago, 2024

es um excelente escritor. ler seus artigos é como saborear uma comida deliciosa.

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