Quando conhecera o génio da lâmpada ele estava sozinho no café Ramona, a meio da tarde, a hora em que se podem encontrar as pessoas entristecidas e que, em especial quando têm mais idade, parece que as suas feições flácidas exercem essa prova: o documento autenticado da vida falhada. Este genial estaria próximo de atingir a condição de reformado, pressentia-se gasta a energia que lhe trazia a diligência em conceder os três desejos, a figura robusta emagrecera muito, ficando em veias e ossos, e a beleza, de outrora, deixara-se corroer pelos zelosos operários que esculpem o tempo no corpo.
“Estou saturado de habitar a penumbra da lâmpada”, disse e quase chorava. Trincou o hambúrguer baixo, devia ter a rodela de carne espalmada e os cabelos de cebola esturricados, pouco mais ingredientes, e submeteu a mão à humidade que transpirava do copo de cerveja. O líquido ajudava a despachar para o estômago o pão que descia lentamente o esófago.
Sabia-os na mesa ao lado e que o ouviam, o génio queria, no entanto, falar, como quem desabafa, e que não tendo interlocutor dirigia-se a um público potencial, imaginário, mas que poderia até existir, desde que o escutassem. E, de facto, ouviam-no.
“Neste país a previsibilidade dos desejos torna a nossa profissão tão monótona. O pedido para o clube de futebol ser campeão. Os números para acertar o jogo de azar. A proeza do semblante façanhudo tomar nos braços a pessoa de rosto carnudo, com as feições cheias de colagénio, recheadas de proteína e dos seus aminoácidos da juventude”.
Arrancou um pouco mais do alimento com os dentes e mastigava na cadência da aliteração, uma repetição fonética da dinâmica dos maxilares.
“Estou cansado de tanta idiotice solicitada. O político que se tem em tão boa conta e deseja que lhe conceda o contorcionismo necessário para fazer amor consigo próprio. A escritora paraplégica que me pede ajuda para esticar a perna e subir o degrau acima, a partir do qual poderá, finalmente, avistar o sentido conotativo, e, assim, encarar as possibilidades plurais de recriar a realidade ou de converter o que se ajuíza ser real em diferentes variações. A ambição da pessoa alardear a pudicícia e que me requer que a livre da marca de concupiscência e de promiscuidade que traz na boca, no registo avermelhado da lesão do herpes labial. E os parentes tão chorosos que reclamam falar com os seus mortos. Caramba, sou o gajo da lâmpada, não tenho a licença de médium, não devolvo espíritos ao mundo material. Já tenho chatices que cheguem, não usurpo funções”.
Comia a sanduíche e bebia o licor amarelo, os cereais fermentados da cerveja namoravam-lhe o paladar e a memória das afeições trouxe-lhe por efeito da imaginação, talvez com o empurrão do álcool da bebida, a imagem de Xerazade. Amava-a tanto quanto odiava o sultão que a aprisionara e a mantinha viva conquanto ela o entretivesse com as suas histórias intermináveis.
“Para o poder do sultão somos apenas um instrumento, válido enquanto for útil, dispensável quando o serviço se tornar fraco ou imprestável de todo. Daí em diante colocam-nos no lixo, nos horríveis ecopontos gigantes da avenida, para se aproveitarem melhor os órgãos dos cadáveres: que possam reciclar e o sultanato os use ou os mercadeje.
A racionalidade e a tecnologia, minha querida Xerazade, vão tornar-nos obsoletos em pouco tempo. Quem em lucidez absoluta acredita no afago da lamparina e na possibilidade mágica de conceder desejos? A expressão volitiva, por si mesma, não mexe um átomo. Os áudio-livros podem substituir-te, esses papagaios de plástico, almas penadas de som, repletos de interjeições e pontos finais ensaiados nos estúdios. Vozes gravadas, sem rostos, a graça humana ausente. Ela que é plenamente graciosa quando espontânea, imprevista, inteligente por oferecer ao momento uma rutura, uma descontinuidade no transcorrer anódino do dia”.
Terminada a refeição, o génio levanta o indicador e, depois de receber a atenção do funcionário, junta o dedo ao polegar e, fingindo que está a escrever no ar, pede em surdina: “Senhor Fred, a continha, por favor!”. Virando-se para a mesa ao lado onde os estudantes liceais o escutavam com troça: “vejam, miúdos!”. Subitamente, o Fred adelgaçara, rejuvenescera, vestia agora uma casaca longa e dançava, trazendo na mão o papel da conta. Fez um número de sapateado e recebeu o pagamento. Regressou, aos pulos e em rodopios, à caixa registadora. “A importância de se chamar Fred”, comentou para os jovens atordoados com a metamorfose momentânea a que assistiram, riu-se para eles e saiu do estabelecimento de restauração para a Rua Eça de Queirós.
Chegara à Rua Príncipe Perfeito e estancou o passo. Olhou para trás e o sujeito que o seguia quase esbarra nele. “Que quer de mim, amigo?
- Nada, génio, ou lá o que é, ou que pensa ser. Estive atento ao que dizia no bar, a exibir-se para os garotos. Decidi levantar-me da cadeira e deixei a comida no prato, quase intacta. Peço-lhe, não faça esse papel de fanfarrão! Deprime as pessoas verem-no atolambado. Esses roupas árabes de filme de época vestem-no de palhaço enlouquecido. Guarde essas ilusões para si, medique-se.
- Essa conversa de cético é genuína, ou é um agnóstico sedento à espera de um pingo de água que caia por milagre? Dava a vida para acreditar em mim! Para crer que existe uma dimensão paralela. Estamos replicados nessoutro universo e nele fazemos o tempo e o espaço com as mãos, eles são a plasticina que os bebés moldam nos infantários a representar, a fazer a vez de algo ou de alguém.
- Genialidade da treta. Vou acabar o meu almoço. Não o quero voltar a ver lá dentro. Rebento-lhe as rótulas a pontapé se desobedecer, anormal, farsante.
- Ameaças-me, mas não me poderias fazer nada, a intangibilidade protege-me de qualquer agressão. Poderia fazer-te em pó estelar, como me é fácil estalar o dedo e o eclipse escurecer a cidade até à penumbra”.
O enorme cartaz do Museu de Aveiro com a imagem da Santa Joana ficou em breu, a estátua de Alberto Souto ocultou-se num manto, de neblina negra, provocado pela surpreendente intromissão da lua entre o sol e a Terra.
Momentos após a obscuridade, regressa a luz natural e o comensal do restaurante repara que sobre o calcário do passeio apareceu a lanterna mágica azulada e que o seu interlocutor desaparecera dali. Ele não estava mais à frente, nem na outra margem do arruamento, ou sentado num dos bancos de jardim que podia contemplar da sua posição.