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Um dia na vida de folhas de papel

Opinião

António Salavessa*

Na véspera ali ficaram. Aconchegadas entre si, guardadas por um dragão de Komodo e pela deusa Bastet, na doce companhia de livros, como elas folhas de papel, nem sequer sonhavam com o que estava para vir.

A Estrela d’Alva não passava de ténue promessa quando lá foram, levadas, até ao local do seu ofício.

Pouco depois começou a cumprir-se o transitório destino. Separadas, contadas e recontadas com cuidado, ficaram com a quase certeza de que cada uma tinha um valor intrínseco e de que nenhuma seria ignorada.

Mais tarde, separadas das da sua cor e novamente agrupadas, agora em trios de cor diferente, aguardaram, empilhadas, pelo que a vontade humana lhes trouxesse.

Durante instantes algumas passaram para outras mãos. Foram espalmadas contra metal, miradas e remiradas por olhos que tentavam descortinar os sinais nelas gravados com tinta tipográfica, quase indelével.

Quem as olhava teve, por breves momentos, a sensação de que as letras e desenhos se agitavam num frenesim de palavras, gritos e bandeiras, como que a chamar a atenção suplicando: aqui, aqui!

Perceberam que os olhares que as percorriam não eram todos iguais. Uns seguros e confiantes no seu gesto, escreviam sem hesitar. Outros titubeavam, fazendo com que a caneta percorresse o espaço à pesquisa de porto seguro, acabando por pousar nalgum lugar. Outros ainda, poucos, desistiam de olhar, guardavam a caneta e devolviam as folhas apenas dobradas, sem nada terem acrescentado. Três ou quatro deles, zangados com a vida e, quem sabe, com o significado das próprias folhas, escreveram coisas doidas que nem ao Demo agradariam.

Nestes breves instantes as folhas sofreram um pouco, paralisadas pelas mãos e laceradas por riscos de caneta. Porém, no fim da dor, sobreveio um êxtase epifânico. Cada escolhida deixou de ser apenas papel transfigurando-se em nova qualidade. Qual borboleta libertada do casulo, a folha tornou-se voto.

Foi assim durante todo o dia. Umas aguardando, em pequenas resmas, que fossem escolhidas, enquanto outras, transmutadas em votos, se iam acumulando em caixas, às quais alguma alma triste, talvez sem saber porquê, deu o nome de urnas.

Chegada a hora certa, tudo parou e mudou. As que apenas aguardavam, deram consigo empacotadas e a caminho de uma qualquer reciclagem, com paragem temporária em arrecadação municipal.

As outras, as assinaladas, foram miradas e remiradas, agrupadas, contadas e recontadas por mãos, ora indiferentes, ora ansiosas.

As contadas viraram números, que se iriam somar a outros números, mais tarde convertidos nos zeros e uns do código binário que iriam circular por aí, à velocidade da luz, até aos ecrãs de quem deles precisasse ou quisesse conhecê-los.

Extraído o seu valor, os votos perderam essa qualidade, agora meras folhas de papel usado. Estranhas às alegrias, tristezas, triunfos e desilusões de que tinham sido génese, foram, também elas, embrulhadas noutras mais escuras, de grosseiro papel kraft. Terminada a função que lhes deu sentido, poucas voltarão a ver a luz do dia, antes do seu fim adivinhado.

Sic transit gloria votorum. *Professor/formador
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