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“As pessoas felizes” de Agustina Bessa-Luís

Opinião

A páginas tantas

Filipa Matias Magalhães*

Penalizando-me por só agora o fazer, esta semana decidi trazer-vos uma das escritoras de que mais gosto, a quem os críticos e os leitores nem sempre dão o valor merecido. Falo-vos de Agustina Bessa-Luís, uma escritora que gosto muito pela forma perspicaz, acutilante e sempre atual com que nos apresenta a sociedade, particularmente a sociedade nortenha e, em especial, as relações entre homens e mulheres.

Acho notável a forma como Agustina parte do universo familiar para abordar temas tao importantes como as mudanças políticas e sociais no país, como se os núcleos familiares fossem o tubo de ensaio dessas mudanças. Por outro lado, o papel de destaque que dá às mulheres na sua obra, elevando-as a protagonistas em muitos dos seus livros, numa altura em que estas não passavam de figuras secundárias e decorativas, é uma excelente abordagem às questões de género que se começavam a levantar. Por último, e esta é a razão pela qual escolhi este livro para vos trazer, gosto muito da atualidade dos seus livros, pois sempre que os volto a ler reconheço nas suas análises e descrições, um paralelo com o que vivemos hoje e, tudo isso, pontuado pelo apurado sentido com que analisa e descreve a sociedade e, em especial, as relações entre homens e mulheres. A crítica social feita nos livros da Agustina era tão verdadeira na altura, como o é agora e, por isso, faz todo o sentido voltarmos a ler a sua obra.

Para quem gosta de história e, em particular, da história do nosso país. Para quem gosta de conhecer outras perspetivas da história e perceber a atualidade das grandes questões da sociedade e para quem quer homenagear e conhecer melhor uma das nossas melhores escritoras, este é um livro perfeito para tudo isso!

“As pessoas felizes” vai-vos apresentar uma outra forma de olhar para a Revolução do 25 de abril, os seus antecedentes e as transformações que operou, pois podemos fazê-lo através da vida de uma família e das transformações que se operavam no seu seio e que iam, de forma indelével, desenhando os traços da revolução que a sociedade já fazia adivinhar. Este livro foi escrito no período pré-revolucionário e publicado já depois do 25 de abril e, por isso, tem a particularidade interessante de nos mostrar como os valores da sociedade mudaram neste período, como foram também eles o motor da revolução e o impacto que esta teve na sociedade, numa análise que se centra nas relações familiares. Apesar de mais de 40 anos e uma revolução nos separarem da altura em que o livro foi escrito, é notável reconhecer a atualidade dos temas tratados neste livro: a felicidade, a liberdade, a profissão e a carreira, o preconceito, o estatuto social, o casamento e a família. Estes são, apenas alguns dos temas que podemos encontrar neste livro e que nos vão fazer pensar sobre o que mudou – ou não – nestes mais de quarenta anos de história do país.

Agustina conta-nos, neste livro, a história da família Torri, uma família burguesa do Porto, cujo pai empreendedor e ambicioso, se aventura em negócios que correm mal e acaba por abrir falência. O declínio da família – que faz com que os seus membros questionem o sentido da felicidade e o estatuto e a condição que tinham até então - é também uma alegoria ao declínio que o país vivia no momento pré-revolucionário e da classe de burguesia económica e fomentadora de riqueza com que o 25 de abril quis acabar.

O paralelismo entre a vida em família e a vida do país, através da desconstrução da realidade familiar e do paralelismo entre esta e os acontecimentos do país, apresentam-nos uma forma romanceada de olhar para a história mais recente do nosso pais, através daqueles que não protagonizaram a revolução diretamente mas que criaram as condições para que esta se fizesse e a foram desenhando no seio familiar. Destaca-se o papel importante de cada cidadão anónimo como motor da revolução sempre que abandona a letargia em que a estabilidade o encerra. “O homem rotineiro desaprova todo o empreendorismo vigoroso. As ditaduras nascem das crises de vitalidade dos povos, e sobretudo das suas dúvidas perante as controvérsias que eles têm que conhecer.”

É frequente vermos nos livros de Agustina muitas personagens e, frequentemente, muitas delas são mulheres, mulheres que nos descreve e apresenta como um retrato do que eram as mulheres da altura – figuras decorativas, mães e donas de casa que não ousavam cultivar e utilizar a sua inteligência. Uma das personagens mais importantes deste livro é uma menina a entrar na adolescência. Ao escolher uma protagonista de uma idade tão tenra, e em que acontecem tantas mudanças, Agustina pretende fazer, mais uma vez, um paralelo com a revolução que se deu no país. Nel, uma menina a entrar na adolescência, vê a sua vida revolucionar-se com a falência do pai. Com o desmoronamento de todos os privilégios e estatutos que o poder económico até então lhe tinha assegurado, Nel é enviada para casa de uma tia, cujo marido mais cauteloso e prudente mantinha o estatuto económico, para aí ser criada com melhores condições. Se para todos os adolescentes este não é um período fácil, para Nel é agravado pelo facto de ter que passar pela falência do pai e pelo desmoronamento de todos os seus privilégios e pelo facto de ter passado a viver em casa dos seus tios.

Esta revolução é uma alegoria à revolução que se deu em Portugal e, também Nel, se questiona sobre o sentido da felicidade e sobre todos os preconceitos, estatutos e instituições que dava por adquiridas e acaba por se desviar do caminho que lhe traçaram, rompendo com a estabilidade, certeza e segurança em que sempre vivera. Nel, reconhecendo que não é feliz – nesta profunda reflexão que faz ao entrar na adolescência -, está disposta a tudo para alcançar essa felicidade, mesmo que isso implique afastar-se do destino que lhe estava destinado. “As mulheres são tanto mais inteligentes quanto felizes nos seus sentimentos, ou seja, invulneráveis a eles (…) Tu não sabes porque preferimos os homens intratáveis, boémios e aventureiros? Porque não se agarram a nós para toda a vida, porque nos deixam depressa, com filhos ou sem eles, mas justificados na nossa infelicidade. É o estado ideal, Maria, o de mulher abandonada.”

As transformações sociais antes do 25 de abril, como o questionar da propriedade privada, o estatuto reconhecido pelo estatuto e pelo dinheiro, o acesso mais generalizado à educação, o crescimento de uma classe burguesa e empreendedora, o questionar do papel da mulher na sociedade e na família, fazem antever uma revolução política que vem a ter lugar no dia 25 de abril e que reflete as mudanças que se foram paulatinamente desenhando no seio das famílias e nas relações entre homens e mulheres.

A revolução antes de ir para a rua começou a ensaiar-se no seio das famílias que começavam a questionar a ausência de liberdade, a estratificação social, a trilogia “Deus, Pátria e Família” e os limites à igualdade. Agustina recorre ao seu peculiar sentido de humor para mostrar como a sociedade começava a criticar algumas das instituições do Estado Novo e a acusar de provincianismo aqueles que, de forma acrítica, ainda as seguiam. Ao relatar a conversa de Aninhas e Leonor, diz-nos que estas gozam com alguns rapazes filiados na Mocidade Portuguesa e “cujo trajo lhe parecia mais uma autêntica demonstração de aprumo militar. Ser da Mocidade acabou por ser ligeiramente deprimente e vulgar, quase equivalente a um escutismo mais caído ao nível paroquial e provinciano”.

É delicioso perceber como a sociedade começou a mudar e ousar questionar as instituições que lhe eram “impingidas” antes mesmo de se fazer a revolução e percebemos que só com esta mudança de mentalidades foi possível fazer a revolução.

Na verdade, começamos a perceber que esta mudança de costumes, a ousadia e liberdade para criticar, a alteração nas relações entre parentes e familiares, mostravam que a sociedade já tinha atingido o grau de maturação para que a revolução acontecesse.

Na sociedade, como nas famílias, acreditamos que a estabilidade é um fator de felicidade até ousarmos questionar se será mesmo assim. “A estabilidade é uma hipocrisia, uma mutilação. Até os povos não querem estabilidade, querem a revisão dos condicionalismos a que se submetem. E nós também somos assim, as mulheres.”

Agustina tem sempre a particularidade de inserir as pessoas na sua época e de mostrar a forma como a politica é o seu reflexo e anverso e, neste romance, a antecipação dos acontecimentos políticos e sociais do 25 de Abril e da mudança que estes operam na sociedade tradicional leva-nos a conhecer uma outra perspetiva deste momento histórico – a história vista pelos olhos das famílias e dos seus membros, elegendo como universo especial o norte e, em especial, o Porto e o que carateriza as suas gentes. “O Porto é rude como a rocha onde tem alicerce. Não se esqueça que o Porto é a estação terminal do Douro, a região mais violenta de Portugal. Violenta porque carrega a miséria com o desprezo. Lá, a pobreza vexa mais a alma do que fere o corpo. O homem e a mulher do Douro têm uma qualidade, que é não serem caninos, não se inclinarem às côdeas que vêem o patrão comer. Nos seus olhos e na sua carne, há imunização à carreira do que sobe na vida e é promovido. Ainda há pouco tempo, o homem do Douro nascia na vinha e morria no saibramento.”

* Escreve, quinzenalmente, a crónica literária “A páginas tantas”

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