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Pum! Estás morto

Opinião

Aveiro por um canudo

Ivar Corceiro*

Para quem não sabe a História de Aveiro, talvez seja difícil imaginar que já foi uma cidade de grandes batalhas entre índios e cobóis, tal como qualquer urbe do velho faroeste americano. As maiores e sangrentas batalhas deram-se entre a antiga localização da Fonte dos Amores e o cemitério Sul, na rua de Aires Barbosa.

São histórias viris que a História não quer contar e que foi enterrando lentamente nas fundações dos novos edifícios que entretanto cresceram no Bairro do Liceu. Era por aí que havia um pequeno grande pântano onde as rãs e os sapos coaxavam a cada tiro ou flecha lançados em direcção ao inimigo e o voo rasante das aves denunciava o disfarce improvisado dos mais bravos guerreiros.

Eu só o sei porque fui um desses guerreiros. Fui nesses tempos portador de uma das mais temíveis pistolas, feita a partir de um galho partido duma figueira selvagem que alguns índios costumavam utilizar como esconderijo. Era uma arma fiável, de grande precisão e quase silenciosa. No fim de cada tiro dizia sempre baixinho: “Pum! Estás morto”. Era assim que cada um dos heróis dessas guerras sabia que a sua vida tinha chegado ao fim.

Também eu morri várias vezes por ali, sempre sem medo. Com a vantagem de que em cada morte podia ficar estendido no chão a olhar na direcção do céu e ver as andorinhas primaveris que construíam os seus ninhos nos telhados. Nunca percebi como é que conseguiam que esses ninhos se sustivessem nos beirais, como se fossem obras da mais moderna engenharia de construção. O que sei é que tenho essas guerras marcadas na memória. Para sempre.

Lembro-me de estar a caminhar nesse pântano sobre uma das tábuas que improvisavam passagens sobre a água, pé ante pé para que o inimigo não me ouvisse, escondido nos altos juncos silvestres. Sabia que os índios andavam por ali. O vento segredava-me isso mesmo e o confronto bélico era iminente. O Miguel, meu vizinho, aproximou-se do meu lado esquerdo e encostou-me a arma dele no braço antes de disparar. “Pum! Estás morto”, disse.

Senti a bala disparada por uma pistola de tijolo a rasgar-me a carne e a alma. O meu corpo foi projectado para trás com violência e caí à água. A tábua tremeu e ele também caiu. Eu rasguei umas calças de fazenda novas em folha nos joelhos e ele começou a sangrar na testa. Gritámos os dois, chorámos os dois, salvámo-nos os dois. Ele disse à minha mãe que me tinha empurrado e eu disse à mãe dele que o tinha empurrado a ele.

Dizem que um homem nunca se esquece das guerras que trava e é verdade. Estou agora em Manchester a beber uma pint de Guiness, aproveitando a minha condição de veterano que entretanto foi obrigado a emigrar. O bar tem um longo balcão onde alguns homens de meia idade discutem futebol e algumas mesas com bancos e cadeiras cada qual de cada qualidade, como se tivessem sido comprados em locais e tempos diferentes. Neste caso, a diferença cria a harmonia. Gosto da ideia.

À minha frente duas mulheres loiras bebem cerveja também loira. As duas permanecem num silêncio de morte enquanto dedilham os seus telemóveis. Um rapaz de uns sete ou oito anos de idade está há algum tempo a inventar brincadeiras na mesma mesa com dois copos vazios e três ou quatro bonecos que não conheço mas que parecem figuras de manga japonesa. Olha para mim, forma uma pistola com os dedos e aponta-a na minha direcção. Dispara em silêncio mas falha o alvo. A bala rasa o meu ombro esquerdo. Disparo também. Sorrimos os dois. Salvamo-nos os dois de um momento de tédio.

As mulheres continuam a dedilhar os telemóveis. Ainda não sei como é que as andorinhas constroem os seus ninhos de forma tão sólida.

* O Ivar Corceiro é um entre muitos aveirenses que vive fora do país. Escreve regularmente sobre esta experiência de ver “Aveiro por um canudo”
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