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Adriano Miranda: As fotografias que nunca quis fazer

Artes

Momentos antes de Adriano Miranda entrar na Ucrânia, a neve cobria as ruas polacas com um manto espesso que, apesar de branco, não era prenúncio de paz, mas de um inverno impiedoso e sujo que, do outro lado da fronteira, muitos continuam a recear não mais ter fim.

Adriano nunca havia estado num cenário como aquele que se vive, faz hoje um mês, em território ucraniano. Partira de Lisboa, na companhia de João Ruela Ribeiro (também ele, jornalista do Público) na noite seguinte aos primeiros bombardeamentos. À chegada a Frankfurt, na Alemanha, uma mensagem do ministério dos Negócios Estrangeiros português alertara-os para o que iam encontrar em Lviv, no extremo ocidente da Ucrânia, a cidade que tinham como meta. Já em solo polaco, novo alerta, desta vez, na conversa que os jornalistas portugueses enviados à Ucrânia partilhavam no WhatsApp. Finalmente, no posto fronteiriço de Medyca, entre a Polónia e a Ucrânia, a primeira evidência: milhares de refugiados – quase todos, mulheres e crianças – a tentar atravessar aquela linha imaginária que separa o medo da esperança. Famílias desfeitas, vidas inteiras resumidas ao que conseguiam transportar consigo. O fluxo de pessoas dava-se, sobretudo, no sentido oriente-ocidente e, para aqueles que controlavam quem passa e quando passa, a cor da pele ditava ordem e prioridade. Mais de “25 quilómetros de carros em fila para conseguirem chegar à fronteira. E diziam que, naquele dia, até estava pequena, que já chegara a ultrapassar os 40 quilómetros”. O desespero fizera com que muitos “abandonassem os carros e optassem por caminhar até à fronteira”, recorda o aveirense. No sentido inverso, sem contar com Adriano, João e outros jornalistas de vários pontos do mundo, entravam emigrantes ucranianos – na maioria, homens – que regressavam ao país, de pé enxuto, para combater o invasor.

Mas o que é que leva alguém a ir para um sítio de onde tantos querem de fugir?

No dia anterior ao início da invasão, numa altura em que a concentração das forças russas e a escalada de tensão já sugeria que o conflito podia estar a meras horas de distância, o editor de fotografia do Público alertou os profissionais da casa para a possibilidade de um deles vir a integrar uma equipa de reportagem a enviar para a Ucrânia. Adriano foi o primeiro a chegar-se à frente. “Foi um ímpeto. Isto não é algo que se decida de ânimo leve, mas passados dez minutos eu já estava a confirmar a minha disponibilidade. Assim que enviei a mensagem pensei: ‘Eu sou maluco, já fiz asneira!’. Mais tarde, recebo um telefonema a informar-me que sempre era eu que ia . Não podia dizer que não. A minha família pediu-me encarecidamente para não ir, mas eu já não podia dizer que não. E fui, nessa mesma noite, de urgência para Lisboa. Voaria no dia seguinte”, relata. “Quando estava a fazer a mala, caiu-me a ficha. Passou-me tudo pela cabeça e tive uma crise de choro a pensar onde me ia meter. Não é só a questão da guerra, é a nossa falta de preparação para estar num palco daqueles. Em Portugal, devem contar-se pelos dedos de uma mão os jornalistas que têm formação para estes contextos, assim como os órgãos de comunicação que conseguem disponibilizar os equipamentos adequados ”. O espírito de missão, porém, falou mais alto e, ao terceiro dia da guerra, Adriano já estava em território ucraniano. “Ser jornalista é uma missão – como ser médico, bombeiro ou socorrista – e devemos estar nos sítios onde a nossa ação é mais importante”.

A guerra cheira a dor, a desespero e a morte. Para um jornalista, cheira sobretudo a impotência. “Lidamos com situações terríveis de sofrimento humano, mas só estamos ali para reportar, para contar a história, não para ajudar de forma direta. Conversamos com as pessoas, sentimos a sua tormenta, mas a única coisa que nos resta é um abraço ou um cumprimento. Não há mais nada que possamos fazer e isso, para nós, é angustiante”, explica Adriano. “Ficaram-me na cabeça muitas histórias das quais gostaria de saber o desfecho e que nunca mais vou saber”, lamenta.

Um dos episódios que mais perturbou o fotojornalista ocorreu na estação de comboios de Lviv. Um pai com uma filha de oito anos que viera de Kharkiv, junto à fronteira com a Rússia. A cidade fora bombardeada, parte do bunker que os recolhia desabara e o homem tinha perdido o contacto com a esposa. “Estava muito nervoso. Pediu-nos calmantes e nós nem calmantes tínhamos para o conseguir ajudar”, descreve Adriano, pesaroso. Quando o comboio chega, pai e filha tentam embarcar, mas a polícia afasta-os, solicitando-lhes os documentos. Todos os homens com idade para serem mobilizados pelas Forças Armadas estão proibidos de sair do país. Era o caso daquele pai, que perdera o rasto da mulher (que não sabia sequer se ainda estaria viva) e a única coisa que queria era salvar a filha. “Acabámos por não saber se embarcaram ou não, se a mulher apareceu ou não. O que terá acontecido àquela família? São questões destas que nos ficam a remoer a alma. Resta-nos contar a história, nada mais”, conclui.

A primeira preocupação de um jornalista quando chega a um país em guerra é arranjar alguém – um fixer, como são designados estes guias – que conheça o território, que domine tanto o inglês como a língua local e que possa ajudar a abrir portas e a estabelecer contactos. “Ali não há conferências de imprensa nem visitas de Estado. Temos de puxar pela cabeça, perceber o que está a acontecer à nossa volta e ir à procura de histórias. Nesse aspeto, a nossa fixer foi fundamental”. A sorte, no entanto, também tem o seu papel.

Foi por sorte que, de visita a uma academia militar onde jovens ucranianos recebiam recrutas apressadas - “noções básicas de como manusear uma metralhadora kalashnikov ou disparar uma granada” -, um dos responsáveis se dispôs a acompanhá-los logo que soube que eram portugueses (o filho do militar vive em Lisboa). Foi a sorte que fez com, numa manhã em que saíram para levantar dinheiro, conseguissem acompanhar, em primeira mão, os funerais dos primeiros militares de Lviv caídos em combate – Ivan e Viktor – que jaziam cobertos com a bandeira azul e amarela à qual prometeram dar a vida. E que dizer da sorte de Adriano, no dia em que, juntamente com João, foi foi detido pelas forças de segurança da cidade de Stryi e levado para uma esquadra. “Estavam desconfiados que havia infiltrados russos dentro da Ucrânia e que muitos deles se faziam passar por jornalistas”, lembra Adriano. “Foi um episódio particularmente desconcertante e intimidatório. Pegaram-me no passaporte, encostaram-mo ao queixo e tiraram uma foto com o telemóvel deles para compararem. Assustei-me porque não estava a perceber o que se estava a passar. Depois vieram outros gajos mais graduados e começaram a verificar os passaportes, carimbo a carimbo, para verem os países por onde já tínhamos andado. Que sorte tive eu de ter tirado um passaporte novo recentemente. O anterior tinha um visto da Rússia! Se eles vissem o visto da Rússia não sei se não nos tinham mantido algumas horas dentro até perceberem realmente quem é que nós éramos”.

Adriano sabe de casos de fotojornalistas aos quais as forças de segurança ucranianas coagiram a “apagar as fotografias que achavam que não deviam ser divulgadas”. Com o aveirense, “felizmente, não aconteceu nada disso”. Terá sido, mais uma vez, a sorte?

Facto é que, num clima de guerra como o que se vive na Ucrânia, “é impossível fazer planos”. “As sirenes podiam tocar a qualquer momento e todos tínhamos de ir imediatamente para um bunker – normalmente, caves de prédios de habitação, de hotéis ou teatros – sem sabermos se íamos lá ficar uma hora, um dia ou mais”. A alimentação nunca foi um problema de maior. “Os supermercados iam tendo algumas coisas. A rede de abastecimento entrava pela Polónia, víamos camiões com ajuda humanitária e bens essenciais. E na zona onde estávamos ainda não havia as carências que já se verificavam noutras cidades, como Mariupol”. “A nossa grande dificuldade era jantar”, já que o horário do recolher obrigatório entrava em conflito com a hora de fecho do jornal. “Houve noites em que não comemos nada, outras em que o jantar foi uma Coca-Cola a empurrar uns enlatados que ainda hoje não tenho a certeza se eram de atum ou de frango”. Noutra ocasião, terão conseguido apanhar um kebabs que fechava mais tarde e que, apesar de lhes deixar o estômago em protesto, serviu para os alimentar. “Nunca tive fome”, garante Adriano. “A alimentação era pouca, nada saudável e, quase sempre, fora de horas. Mas, talvez devido à adrenalina ou à ansiedade, isso nunca me tirou um minuto de preocupação. Só tinha cuidado em tomar os medicamentos que tenho de tomar todos os dias. De resto, não podíamos estar com pruridos”. “Obviamente, digo isto porque, felizmente, não passámos por nenhuma situação de rutura, de fome ou de sede”, ressalva.

Se o recolher era obrigatório, o descanso era quase impossível. Como se as sirenes não bastassem, é à noite que “bate a solidão”. “O que viste, com quem falaste, o que presenciaste durante aquele dia, passas isso tudo em revista quanto estás deitado a tentar adormecer. Isso e a expectativa para o dia de amanhã, mais um dia de incerteza”. “Não queiram ser a almofada de um jornalista”, avisava Adriano na derradeira crónica da guerra, antes de regressar a Portugal. “O que me safava todas as noites era poder ligar à minha família, ainda que o tema das conversas fosse sempre dar à guerra”.

De volta a casa, Adriano Miranda não esconde “a sensação de que não devia ter regressado”, bem como “uma vontade enorme de voltar à Ucrânia”. “Tenho acompanhado o trabalho dos meus colegas que lá estão e essa vontade não esmorece. Espero voltar. Gostava de lá voltar não em cenário de guerra, mas quando chegar a altura – porque vai chegar, mais cedo ou mais tarde – de reconstruir aquele país. Aquele povo não pode ficar no esquecimento”.

A banalização do conflito e o esquecimento daquela gente são receios que preocupam Adriano e que têm sido motivo de conversa com os seus pares. “Temos falado muito sobre isso. A guerra da Ucrânia dura há um mês, mas nada nos garante que não passe rapidamente a anos. Não há estrutura financeira das empresas, nem estrutura emocional dos profissionais de comunicação para estarem lá constantemente e toda a situação tende a começar a banalizar-se, a ficar no esquecimento. Isso seria terrível para aquele povo. Só desejo que cheguem depressa a um acordo e que o conflito termine”, espera Adriano.

As fotografias que Adriano Miranda fez nos 15 dias que passou em território ucraniano, bem como as crónicas diárias que foi partilhando no Público, podem agora vir a materializar-se em livro. A ideia partiu de Paulo Morgado, da Gráficos Associados (editora de "São Pessoas" de Adriano Miranda e Paulo Pimenta), que acompanhou atentamente os relatos e as imagens que o fotojornalista aveirense foi divulgando e começou a esboçar o projeto. Neste momento, a dupla está à procura dos apoios necessários ao financiamento da produção, impressão e acabamento da obra. Além da edição em português, o livro deverá contar com versões em inglês e ucraniano, sendo que a tradução já está assegurada por duas profissionais da Universidade de Aveiro que se prontificaram a colaborar gratuitamente. Caso o projeto obtenha o financiamento necessário, cada exemplar do livro será vendido a cinco euros e o valor resultante inteiramente doado ao Fundo de Assistência a Famílias de Baixos Rendimentos em Lviv, na Ucrânia.

Adriano não devia ter mais de 11 anos quando fez a sua primeira fotografia: um retrato da mãe e de uma tia, na sua casa de Aveiro, com uma máquina fotográfica de bolso da Kodak que os publicitários da época apelidavam de “Baratinha”. “Foi a primeira fotografia que tirei e cortei-lhes logo as cabeças”, lembra. Apesar daquele primeiro enquadramento enviesado, nascera com aquela foto uma paixão que, daí em diante, não mais deixou de crescer. Aos 15 anos, numa viagem com os avós à União Soviética, o avô comprou-lhe “uma Kiev, uma máquina muito bonita que era produzida no território onde hoje é a Ucrânia” para que registasse as memórias daquela visita. “Tinha uma objetiva muito boa, nada que se compare com a objetiva de plástico da Baratinha, e a malta olhava para as minhas fotos e dizia ‘Ei, parece um postal’”, conta Adriano. “É curioso, não é? Foi lá que se deu o clique e que tive pela primeira vez a noção de que queria mesmo ser fotógrafo”.

Adriano Miranda é fotojornalista do Público há quase 25 anos. Começou por fotografar em filme, claro, e até confessa ter sido “um purista do analógico”. O tempo, contudo, convertê-lo-ia à agilidade e conveniência da fotografia digital. Passou por uma fase em que preferia o dramatismo do preto e branco; hoje, é a cores que melhor expressa a sua técnica e talento. É um irredutível adepto de luz natural, ainda que tenha lá por casa “um flash novo, guardado dentro da caixa, que nunca chegou a ser usado”; quanto às suas objetivas de eleição, opta sempre por uma grande angular em detrimento de uma teleobjetiva. Afinal, “a reportagem faz-se junto das pessoas e não ao longe”.

Dos milhares de fotografias que fez nestes anos, há algumas que recorda mais amiúde, seja pela estética da sua composição ou pela expressividade do objeto fotografado, seja pelas histórias e emoções que lhes estão associadas. Lembra, por exemplo, uma fotografia de Yasser Arafat tirada de um reflexo rápido já depois de o antigo líder palestiniano se ter despedido da dupla de jornalistas que o entrevistara no Hotel Ritz; ou uma fotografia em que a flashada parasita de um colega sobre-expôs a cara de Armando Vara, deixando, na máquina fotográfica de Adriano, um registo em que a figura mais mediática do processo Face Oculta aparece, ela própria, com a “face oculta”; ou ainda o retrato que imortalizou Manuel Francisco Ribeiro – o senhor Francisco – como o rosto das populações atingidas pelos incêndios florestais de 2017.

Apesar de relativamente recente, esta última é a que lhe merece maior destaque. “Aquela fotografia ganhou asas. De um momento para o outro, correu o país e o mundo. Aquele homem tornou-se símbolo de uma outra guerra, a dos incêndios que, naquele ano, devastaram o país. Criou-se uma onda de solidariedade à volta dele o que, para mim, foi muito gratificante. Além disso, ao contrário das pessoas que fotografei na Ucrânia, com ele consegui acompanhar o desfecho da história e testemunhar um final feliz”, conta Adriano, a propósito da fotografia que lhe valeu o Prémio Gazeta, o mais alto galardão de jornalismo em Portugal. “Costumo dizer, na brincadeira, que é ‘o meu Che Guevara’. Se o Alberto Korda ficou conhecido por aquela imagem mítica do Che Guevara que está em todo o lado – t-shirts, canecas, bandeiras –, muita gente conheceu-me através da fotografia do senhor Francisco”. “Se um dia, quando eu morrer – e conto que isso só aconteça quando for muito velhinho – se lembrarem de mim, provavelmente, será como o fotógrafo do Público que fez o retrato do senhor Francisco”, partilha o fotojornalista que, todavia, não se vê a exercer profissionalmente o fotojornalismo durante muito mais tempo. “Tudo tem o seu tempo. Já tenho 24 anos, quase 25, de fotojornalismo. É tempo de dar o meu lugar a pessoas mais novas, com outras ideias e outras abordagens”, entende Adriano, considerando que “ao estarmos muito tempo nas mesmas funções, temos tendência para cristalizar”. “Não quero estar no Público até morrer”, assegura.

Por onde poderá passar, então, o futuro? “O meu grande sonho é reformar-me”, atira, meio a sério, meio a brincar. Porém, enquanto as suas responsabilidades de pai não permitem que avance com esse sonho, há um mundo novo que lhe tem despertado interesse crescente. “Gostava de poder ainda trabalhar na área editorial, na qual tenho feito algumas coisas e tenho aprendido muito. É uma área que cada vez gosto mais e gostava de poder ajudar novos valores, novos talentos da fotografia a criarem os seus projetos e a editarem os seus livros”.

* Fotos: Adriano Miranda/PÚBLICO

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