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Era julho, como agora

Opinião

Virgílio António Nogueira

Quando éramos miúdos e era julho, como é agora, e estávamos de férias como os estudantes as gozam nesta época, o João Pedro ainda não tinha morrido, vítima do invasor invisível que se insinuou no corpo que transitava de criança para adolescente, e lhe tomou primeiro a mobilidade no pé e na perna, depois foi devorando a carne, sugando-lhe o ânimo e, por fim, em pouco mais de um ano, o cancro ficou-lhe com a vida. Das memórias que temos com ele estão, entre tantas outras, as de convivermos durantes esses meses, os de intervalo entre um ano letivo que terminara já maio estava bem maduro e o outro que começaria no dealbar de outubro.

Nesses verões longos ficávamos por nossa conta, ajuntados no largo de plátanos, reunidos nos bancos de madeira, quase tão aborrecidos com o calor como os cães sem dono, vadios, que estiravam os corpos e olhavam-nos na expetativa de termos trazido de casa qualquer coisa que pudessem roer, mastigar, ou talvez mesmo engolir para que o estômago perdesse a impressão desagradável de depósito vazio em que que se podia ouvir o eco da fome.

Eu, o João Pedro e a malta não dispúnhamos de programas de OTL, não tínhamos instituição a disciplinar o tempo, a exercitar-nos para as competências sociais e a preparar-nos para a exigência de competitividade, andávamos, sem saber, a descobrir o que era o devir, a expandir a imaginação assim que acrescíamos território ao que conhecíamos do bairro, depois da cidade, depois dos viveiros e das marinhas. Porque tínhamos o tempo descontrolado entre a hora em que despertávamos, podia ser qualquer uma, e aquela em que a luz afrouxava e sabíamos que em casa já o odor do estrugido dançava pela cozinha e seguia para os camarins, talvez fizesse o percurso em saltos elegantes como os de Nureyev, mas confesso que esta é apenas uma ideia sem tangibilidade.

Tínhamos mais horas para passar que moedas no bolso, uma bola de futebol então refulgia como um tesouro de piratas, aparecia na forma de miragem que rolava para os nossos pés e a tornávamos um esférico real, pontapeado todos os dias, de manhã à noite. Já cansados descíamos à ria, ao Canal de São Roque, deitávamos os corpos magros sobre a vegetação marinha, ao lado do viveiro do Simões e a seguir trepávamos os degraus de cimento da ponte de Carcavelos e saltávamos do muro do lado poente, encontrando a água com a cabeça se o salto tivesse beleza olímpica, ou com os pés, se o jeito se resumisse à obtenção do prazer de arrefecer o esqueleto no leito salgado do canal que parecia ter diamantes no pescoço no momento em que o sol se refletia na superfície.

Noutros dias as marinhas eram o oeste da cidade, mas igualmente aquele que buscávamos em aventura, na descoberta de qualquer ouro, que não encontrámos, apenas mais tarde o vimos, na lembrança do que sempre sabíamos sem valorizar: o brilho do sol nas marinhas, o beijo que as secava e que lhe daria os cristais preciosos, o perfume das plantas e das lamas, a geografia labiríntica de esteiros e motas, as bateiras sobre a água com a pompa da armada invencível, as enguias a fintar a paciência dos pescadores, às vezes o vento norte levantava os vestidos das meninas que seguiam connosco e a difusa promessa de prazer corria nos corações que cavalgavam com a fúria de cavalos selvagens.

Mais adiante, quanto mais adentro do horizonte, virávamos o pescoço e as casas e os prédios que ficaram ao longe seriam a silhueta de uma mulher deitada e o ruído de Aveiro um rumor que chegava fora de tempo, uma carta transviada que finalmente chegou às mãos, um eco que deu uma volta distante por ser um rufia e não se ater às leis da acústica. Seguíamos por caminhos estreitos, tendo como paragem uma árvore esquálida, que não tinha recuperado a força após o inverno agreste, os ramos torcidos do reumatismo, mas ainda assim se mantinha erguida, a fazer-se passar por um monumento à resistência dos seres da laguna. Umas quaisquer badaladas que se ouviam no cérebro empurravam-nos para o regresso a casa, aos pais cansados, talvez com inveja dessa liberdade que já tinham perdido, fatigados um do outro, saturados da rotina, incapazes de fugir à responsabilidade de colocar o caldo no prato, mesmo que esse arroz e o frango desfiado lhes custassem os sonhos de juventude, adiados para outra vida.

Quando éramos miúdos e era julho, como é agora, e estávamos de férias como os estudantes as gozam nesta época, e o João Pedro ainda não tinha morrido, podíamos contemplar a formosura geométrica das marinhas, os casebres em que os marnotos abrigavam os utensílios e as mesas em que abriam os tachos com o almoço trazido de casa, podíamos vislumbrar o namoro do céu azul com as águas a devolverem-lhe um beijo com cores pálidas, podíamos sentir a leveza do ar acariciar a pele e dávamos graças ao silêncio que permitia escutar os mergulhões ou as andorinhas e que com mais atenção deixava ouvir crescer o junco e a salicórnia.

Agora que somos adultos, julho chegou outra vez, aproximou-se mais célere do que nunca, o João Pedro continua jovem nas nossas lembranças e quando regressava do jantar pela A25, no sentido das praias, tendo na ilharga os habitantes pontuais do parque aventura, vemos adiante, pelo para brisas, o sol incandescente, a incendiar o horizonte, a tingi-lo de fogo, em tons de vermelho sanguíneo e outros de rosa pastel, uma palete de pintor refinado, e procurei o telemóvel que estaria num dos bolsos, enquanto a minha irmã desacelerava a velocidade do carro, e então com a máquina de milhões de pixéis na mão tentei capturar o astro rei naquele traje de cores maravilhosas. Mas o enquadramento de tal majestade ficou destituído pelo rail da autoestrada e pela estrutura do caminho ferroviário. Seguiam a nosso par, dois riscos em frente dos olhos, duas doenças oftalmológicas, duas penitências para os que não souberam defender Aveiro, a terra sagrada e mágica, que deixaram plantar ali o biombo de cimento sem protesto, sem luta ficaram sem o postal que os antepassados lhes legaram, que a natureza lhes deixou em herança. Desculpa, João Pedro, não cuidámos do horizonte que tantos amámos, perdemos a intimidade com os nossos recantos, desperdiçámos a privacidade que tínhamos, todos, como comunidade, nas marinhas, na ria, no ecossistema das nossas vidas.

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