Gostava do cheiro a fritos pela manhã no dia de Natal. O odor dos bilharacos, das rabanadas e dos sonhos flutuava no ar frio de dezembro, a doçaria da festa do aniversário do nascimento de Jesus impregnava a casa, espalhando o perfume açucarado das iguarias a partir das sertãs a queimar nos bicos de gás do fogão da cozinha. Era assim, continua a ser.
Ao longo dos tempos houve perdas. Familiares que já não estão connosco à volta da mesa na ceia, amigos de quem já não recebemos a mensagem de boas festas, o cão que quase assava acampado no rebordo da lareira e que agora jaz sob a terra debaixo da laranjeira. Esgotou-se a paciência para fazer a composição de cores e geometrias com os adereços reluzentes nos ramos da árvore de natal artificial com estrutura de ferro. Já não aquela com tronco de madeira que o avô escolhia e que arrancava ao crescimento com o auxílio da lâmina curva da catana. Infanticídio que felizmente terminou, os pinheirinhos crescem agora para o sol e não acabam na indiferença do lixo, no fim das festas, junto das lâmpadas que os serpenteavam e que cegaram de tanto piscarem. Finda a candura pressuposta na entrega das prendas, confirmada a inexistência do Pai Natal, percebeu-se que se trocam não apenas apreços, mas também valores, pagando-se antigos ou futuros favores. Tal como inexistem os almoços oferecidos sem contrapartida, não há nem presentes grátis, nem reis magos, mais ou menos generosos ou desinteressados, a seguir uma estrela ou, por absurdo que seja, um barco moliceiro, ou a nau Catrineta.
Por mais que o tempo passe linear como a corrente do rio e uma espécie de névoa envolva o passado, há imagens do Natal que sobrevivem no palco da memória como atores que ignoraram o fim da peça e permanecem em cena.
As imagens das recordações da montra da Casa Ratola são as do encantamento da criança, observando o mostruário por trás do vidro da fachada, com os pés assentes no calcário do passeio. O catraio olha fascinado os desenhos das caixas da Airfix, imaginando os exércitos em combates ferozes, mas, ainda assim, sem sangue derramado e sem provocar dor nos combatentes, o miúdo calcula o poder de fogo do armamento, escutados os disparos apenas como um som vago e perdido no cérebro. Admira-se com os detalhes dos uniformes coloridos de tropas que não se sujariam nas trincheiras. Os filmes de guerra que vê no cinema estão materializados nos soldados de brinquedo e nas suas armas de plástico que nunca feriam ninguém. O cachopo anima-se com as equipas do Subbuteo que iriam deslizar no campo de feltro verde esticado na mesa e preso por pioneses na madeira, móvel que ocupava um dos quartos do sótão lá de casa. Exercia a perícia do piparote dado pelo dedo indicador na semiesfera da base do jogador para adiantar a bola e para depois desferir o remate à baliza, eram os golos que se marcavam no conforto doméstico quando a chuva e o frio proibiam sair do lar e jogar futebol na rua. Uma fila de carrinhos da marca Matchbox reproduzia na montra os automóveis que os adultos conduziam. Viaturas da polícia, longas como as das séries norte-americanas de televisão, as de vermelho flamejante dos bombeiros, camiões, carrinhas, veículos militares, carros de luxo e outros de transporte de gado, um catálogo diverso como um stand gigante ajudava os miúdos a imitar a agitação na avenida das cidades, a replicar a vida adulta que em breve seria a sua. Na vitrina do bazar também aguardavam compradores os jogos da Majora que iriam entreter as tardes. O Mikado para treinar a virtude da paciência, o Sabichão com vista a educar as jovens gerações anteriores às do Trivial, o Loto a explicar que a sorte faz parte do dia-a-dia, o jogador cuidando da tática nas Damas e da estratégia nos movimentos das peças no tabuleiro do Xadrez.
A matéria de que eram feitos os nossos sonhos de meninos morava na Rua de Viana do Castelo, em frente à antiga Capitania do Porto de Aveiro. A D.ª Maria Ratola geria o stock de brinquedos, dividindo-os essencialmente por género, os que a época destinava aos rapazes numa ala e os que se supunha interessarem às raparigas na outra. Desconhecia a estimada senhora, que as mães tratavam por D.ª Mariazinha, que essa separação criaria pretensos estereótipos e consolidaria valores sociais que prejudicariam a igualdade e a paridade da condição de homens e mulheres e a relação de poder entre eles.
Entretanto, importada de países mais ricos, a lógica da economia de escala gerou lojas de brinquedos sem a fragrância apetitosa, quase comestível, do pequeno comércio, e os recantos de magia do centro da cidade desfearam-se em armazéns, montados na periferia, com dimensão capaz de gerar eco no interior dos imóveis. Surgiram os hipers, quais asilos desconfortáveis, sem o acolhimento caloroso do proprietário ou dos funcionários que a biografia ligaria somente àquele espaço, outrossim atendidos por pessoas supostamente empurradas pelos centros de emprego, aborrecidas por receberem o curto pecúlio e olharem para a frente e temerem ver somente a guilhotina a cortar a ligação precária do corpo com a cabeça em que residiam as justas ambições de uma existência digna.
O Bazar Regional de Aveiro - Souto Ratola estará no obituário do comércio aveirense, setor que precisaria de escrever a sua História para lembrarmos e honrarmos os criadores de economia, emprego e desenvolvimento em Aveiro, tarefa mais urgente do que palavrear, em pífios panegíricos, sobre os subtratores da riqueza das famílias, que a consomem para o efeito de triunfalismo pessoal.
O souk da diversão, o lugar sacralizado pela pequenada de outrora deu lugar, se a topologia acerta, a outros ferros e tijolos recém-nascidos. No edifício novo servem-se refeições rápidas e saborosas a preços simpáticos. Dir-se-ia que as panelas e os tachos das crianças cresceram, tornaram-se igualmente maiores de idade, e agora têm dentro de si a realidade quotidiana, as batatas, o arroz, as massas, e os demais víveres, escritos a giz branco no quadro preto assente na plataforma do cavalete à entrada do estabelecimento: a canja de galinha, os rojões e a restante ementa de pratos diários.
O verso do anúncio do menu do restaurante oculta o túnel que dá acesso, se quisermos aceitar o delírio ou a promessa da teoria Física, à estrada da viagem em flashback aos anos 70 e 80 do século passado. Reviveremos, se tivermos a coragem de posteriormente nos confrontarmos com o envelhecimento, os dias felizes, aqueles em que desenhávamos horizontes e desconhecíamos que a pobreza de espírito abre a porta da inveja e que a crueldade estúpida e perversa pode habitar no domicílio de representação e proteção dos cidadãos.