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Pandemia e corte de patrocínio não quebraram os laços entre famílias da região e meninos de Chernobyl

Sociedade

Na madrugada de 26 de abril de 1986, um teste de rotina na central de Chernobyl, na Ucrânia, desencadeou o maior desastre nuclear da História. Trinta e cinco anos depois, a contaminação radioativa ainda se faz sentir na região e tudo indica que vai ser assim por mais algumas centenas de anos. Para quem ali vive são comuns problemas de saúde nas vias respiratórias e na pele, bem como anomalias no funcionamento do coração e da tiroide.

Durante onze anos, várias famílias portuguesas acolheram crianças e jovens residentes nas povoações ao redor de Chernobyl para um mês de férias longe das radiações. O objetivo do programa solidário Verão Azul, organizado e financiado pela Liberty Seguros, era ajudar a reforçar o sistema imunitário destas crianças e contribuir para o aumento da sua esperança de vida. De acordo com algumas estimativas, cada mês em Portugal, longe das zonas afetadas pelo desastre nuclear, e com o sol, o mar e uma alimentação mais rica e equilibrada, pode valer-lhes mais um a três anos de vida. Além disso, ao integrarem-se nas rotinas e dinâmicas familiares daqueles que os acolhiam, estas crianças e jovens “passavam a ser da casa, a ser da família”. Sem deixarem de ser ucranianos, passavam a sentir-se um pouco portugueses; sem esquecerem a sua família originária, passavam a ter, cada um deles, uma família portuguesa; e os laços de afeto e carinho mútuo que os uniam prometiam durar toda uma vida.

Terá sido, portanto, com um misto de surpresa, indignação e desânimo que, nas vésperas do Natal de 2019, as famílias de acolhimento receberam um e-mail da seguradora, em que esta os informava que havia optado por não renovar o apoio ao projeto.

Lurdes Vieira que, até então, acolhera Diana por dois verões consecutivos, confessa que a primeira coisa que lhe passou pela cabeça foi “que nunca mais ia voltar a vê-la”. “Foi uma desilusão muito grande”, refere a antiga professora, recordando momentos de bastante “tristeza e revolta”. Sentimentos partilhados por Pedro Viçoso e Alice Sardo que, ainda hoje, não se conformam com modo e o timing daquela comunicação. “Foi um presente de Natal envenenado”, afirma o casal que estava habituado a acolher Kateryna, todos os anos, desde o verão de 2015. “Tudo estava a correr normalmente. Os miúdos tinham regressado à Ucrânia encantados, felizes, saudáveis e com a expectativa de voltar no ano seguinte. Passados quatro meses, sem que nada o fizesse prever, enviam-nos um e-mail a informar que tudo tinha acabado”, descreve Alice. “Quiseram desligar-se totalmente do projeto e não nos deram outra saída senão a de o terminar abruptamente. Podiam ter tentado chegar a uma solução com as famílias de acolhimento, podiam ter promovido uma transição gradual em que passássemos a ser nós a pagar as viagens, mas não foi nada disso que fizeram”, acrescenta a educadora de infância. “Não merecíamos que as coisas tivessem sido tratadas desta forma. Fomos descartados”, entende.

Na altura, a seguradora justificou a decisão de cortar o financiamento ao projeto com base numa “alteração de estratégia” da empresa, que considerava dever focar a sua responsabilidade social “no apoio à prevenção rodoviária e também junto de associações de cidadãos portadores de deficiência”. Justificações difíceis de aceitar por quem tinha aberto não só as portas da sua casa, mas, principalmente, os seus corações àquelas crianças e que, de um dia para o outro, via desmoronar-se a expectativa de continuar a recebê-las.

Como se tudo isto não bastasse, ainda pairava sobre as famílias de acolhimento o pesadelo de ter de dar a novidade às crianças. De uma maneira ou de outra, a notícia não tardaria a chegar à Ucrânia. “E se ela pensasse que éramos nós que não a queríamos cá?”, temia Lurdes. Pedro e Alice, que comunicavam com Kateryna por mensagem instantânea ou videochamada, repararam a jovem progressivamente menos recetiva às tentativas de contacto. “Notámos alguma apreensão. Passou a não atender, a dizer que estava ocupada ou a demorar muito tempo a responder”, recorda o casal que entende o comportamento como “uma forma de defesa” da jovem perante a situação que estava a viver. Nas vezes em que atendia, “o queixo começava a tremer-lhe e não conseguia falar. Uma vez, pediu-nos para lhe mostrarmos o quarto dela e ficou bastante emocionada”, lembram Pedro e Alice, ainda consternados pelo sufoco que a incerteza daqueles tempos trouxe a toda a família.

Se, para a maioria das famílias de acolhimento, o malfadado e-mail de finais de 2019 acabaria mesmo por significar um ponto final categórico e definitivo, não foi assim para quatro famílias da região de Aveiro (três de Ílhavo e uma de Ovar) que se recusaram a baixar os braços e, desde logo, procuraram alternativas para continuar a receber as “suas” crianças.

O primeiro passou foi contactar Inna Sheremet, assistente social do Centro Doviria, a instituição ucraniana responsável pelo recrutamento das crianças e antiga parceira da Liberty no programa Verão Azul. Inna disponibilizar-se-ia para acompanhar as crianças na viagem desde a Ucrânia, sendo que a logística das viagens ficaria a cargo da És per Tu, associação espanhola que acolhe crianças de Chernobyl ao abrigo de um programa semelhante ao Verão Azul e que, em articulação com as famílias portuguesas, que financiariam as viagens, traria as crianças de Kiev até Barcelona. As viagens de Barcelona a Portugal e de volta a Barcelona seriam, por sua vez, garantidas pelas famílias portuguesas.

Quando o processo parecia estar bem encaminhado e todos já antecipavam mais um verão inesquecível, o despontar da pandemia veio virar tudo do avesso e atrasar por mais de um ano o regresso das crianças a Portugal. Com tantas peripécias e contrariedades, Pedro admite só ter acreditado “quando eles estavam no avião”.

Dar continuidade à iniciativa é vontade assumida pelas quatro famílias da região de Aveiro. Assim a crise pandémica o permita e as crianças estarão de volta a Portugal já no verão de 2022. O objetivo também se mantém: proporcionar a crianças e jovens da região mais afetada pelo desastre nuclear de 1986, períodos de férias em Portugal, longe das radiações, bem como das preocupações inerentes a famílias quase sempre numerosas, num país predominantemente rural, desolado pela pandemia e assombrado pelo fantasma de um eminente conflito com a Rússia.

No entanto, se, por ora, a via espanhola continua disponível para estas famílias, num horizonte mais largo, e para o projeto poder ter futuro em Portugal, a solução teria de passar pela constituição de uma associação que pudesse assumir os trâmites do processo de recrutamento das crianças mais desfavoráveis, o contacto com as famílias ucranianas, a angariação de mais famílias de acolhimento portuguesas, a logística das viagens e toda a burocracia necessária.

Lurdes confessa já não sentir a “coragem e energia necessárias para encabeçar um projeto desta envergadura”, mostrando-se disponível, ainda assim, para ajudar em tudo o que estiver ao seu alcance. “Falta-nos uma mola, alguém que tome a dianteira”, considera. Para Pedro e Alice, neste momento, o principal entrave a avançar é a necessidade de realizar “viagens anuais de uma a duas semanas à Ucrânia e todos os encargos que isso significa”. “Talvez esta vinda delas nos motive a avançar finalmente com a associação”, espera Pedro Viçoso.

Apesar de ser prática comum no contexto do projeto espanhol, esta é a primeira vez que as famílias portuguesas recebem as crianças ucranianas no inverno. As propostas de atividades, experiências ou passeios ao ar livre serão invariavelmente diferentes do habitual (ainda que esteja prometida uma visita à praia para ver o mar). Além disso, há que ter em consideração que as restrições derivadas da pandemia não se coadunam com programas muito ambiciosos. Assim, a opção tem sido “ficar por casa”. “Elas não se importam nada. Só o ambiente de estarem em casa, confortáveis, de lareira acesa parece bastar-lhes”. E, verdade seja dita, nesta quadra festiva, há tanto que fazer por casa: cozinhar pratos tradicionais, fazer jogos em família ou ouvir repetidamente as canções mais rodadas da época. “ para elas, o mais importante é matar saudades das pessoas”, confirmam as famílias.

Kateryna e Diana já vão percebendo o português, ainda que, depois de mais de dois anos sem visitar Portugal, estejam com a língua enferrujada. Felizmente, para estas famílias, não há expressão que não consiga exprimir-se por gestos ou palavra que uma visita rápida ao tradutor do Google não esclareça. A linguagem do amor é universal para todos os que ousam usá-la.

A conversa com a Aveiro Mag aconteceu nas vésperas de um Natal que, com toda a certeza, ficará guardado no livro das melhores memórias destas crianças e destas famílias. Para Lurdes, não foi sequer preciso esperar pela meia-noite de 25 de dezembro: “Quanto a mim, já aqui tenho a melhor prenda de todas”, assegurava, pousando o olhar em Diana. Pelos sorrisos com que Pedro e Alice observavam Kateryna atrevemo-nos a concluir que, também para o casal, é nela que reside a verdadeira essência deste Natal.

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