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Tiago Fraga: “Os arqueólogos não escavam cacos, escavam pessoas”

Sociedade

Há 50 anos, vestígios de uma embarcação em madeira dos quais se destacava uma peça ornamentada em espiral e decorada com motivos vegetais foram encontrados nas fundações de um hotel junto ao farol da Barra. Apesar da curiosidade gerada, estes artefactos seriam abandonados sem que se procedesse a medidas de preservação que pudessem levar à sua investigação e valorização. Nas décadas seguintes, outros fragmentos de navios e restos de cargas foram descobertos em vários pontos da laguna. Um vasto conjunto de património submerso que não só viria a fornecer importantes pistas sobre a história da construção naval, das atividades marítimas e da produção cerâmica na região, como fez da Ria de Aveiro o local de maior concentração de naufrágios em Portugal.

As letras do alfabeto começam a escassear para nomear os sítios arqueológicos encontrados na Ria de Aveiro. Todavia, de todos os achados, o mais mediático continua a ser o Ria de Aveiro A. Descoberto em 1992, no canal de Mira da Ria de Aveiro (em frente à “praia da Biarritz”, na margem oeste do canal e a sul da ponte da Barra), os vestígios do naufrágio Ria de Aveiro A remontam ao século XV. De acordo com a equipa de arqueólogos que, entre 1996 e 2005, esteve responsável pela sua investigação, este achado continha parte da estrutura de uma embarcação em madeira e uma mancha contínua de despojos do naufrágio com centenas de cerâmicas – que se sabe serem originárias da região de Aveiro – ­depositadas sobre uma cama de ramagens de pinheiro e urze. Fala-se, ainda, de outros vestígios, como fragmentos de uma pá e de barris, pedaços de cabo e de tecido, um alfinete em bronze, uma bala, castanhas e grainhas de uvas e nozes.

Apesar da sua popularidade, este não é, na opinião do arqueólogo náutico Tiago Fraga, o naufrágio que merece maior destaque na Ria de Aveiro. Nos lodos e areias da laguna aveirense jazem “navios mais antigos e mais valiosos, testemunhos materiais capazes de mudar completamente o paradigma e contar uma história bem diferente daquela que conhecemos”, diz o arqueólogo. E isto sem contar com as “referências bibliográfica de naufrágios que ocorreram na Ria de Aveiro” e com aqueles que “foram vistos, mas nunca foram revistos ou escavados, como é o caso do naufrágio da ponte da Vista Alegre ou o do viaduto da A25, na Gafanha da Nazaré”.

Tiago Fraga liderou a equipa de arqueólogos que, em agosto de 2019, descobriu os vestígios de um antigo acampamento pré-histórico no canal de Ílhavo (mais propriamente, a norte da ponte Juncal Ancho, entre a entrada para o esteiro da Malhada e a Gafanha de Aquém), enquanto acompanhava os trabalhos de desassoreamento da Ria de Aveiro. “Chegámos a Aveiro com um contrato de sete meses e, três anos depois, ainda cá estamos. Lembro-me que, mal começou o projeto, apanhámos logo três grandes bombas: um pedaço de um navio que andávamos à procura há mais de 15 anos – o Ria de Aveiro F –, encontrado no canal de Mira, materiais de origem romana nas marinhas e o primeiro sítio pré-histórico subaquático do país, aqui na Gafanha de Aquém”. Terminadas as operações de dragagem, a principal conclusão é que “ainda há muito para descobrir no fundo da Ria”. “Há quem pense que esta empreitada teve uma grande magnitude, mas só 2 por cento da rede hidrográfica é que foi intervencionada, sendo que, dos canais antigos, talvez não tenhamos mexido sequer em 1 por cento. Se, com isto, já foi descoberto tudo o que é do conhecimento público, até a mim, que sou arqueólogo, me custa a imaginar o universo de coisas que a Ria ainda poderá esconder e os segredos que ainda estarão por desvendar”, expõe.

O arqueólogo está convencido, por exemplo, que “a Ria de Aveiro terá tido uma presença pré-histórica muito mais elevada do que se pensa”. “A universidade de Aveiro foi construída sobre um grande mercado pré-histórico. Ora, para haver ali um mercado, é de supor que existissem ocupações humanas por toda a região, povoações que utilizavam a água como meio de comunicação e se juntavam naquele local. Ainda não conhecemos esses povoados. Como ficou demonstrado pelo sítio que encontrámos , os vestígios dessas ocupações encontram-se atualmente em patamares, hoje, submersos e enterrados no lodo”, esclarece. “Também já andámos à procura de pirogas do calcolítico – é provável que estejam umas quantas enterradas em frente à universidade. O que já encontrámos foram vestígios de aparelhos de pesca (pesos para redes) do neolítico. E, se havia redes, havia barcos”, deduz Tiago.

Num momento em que já se fala de uma nova empreitada de dragagem que, desta vez, contemple os ancoradouros das associações e clubes náuticos, Tiago Fraga receia que a cultura material submersa na Ria de Aveiro possa estar em risco. Desde logo, porque “a lei tem buracos”: ao passo que, pela sua dimensão, a última empreitada teve de ser acompanhada por uma equipa de arqueólogos, se os municípios ou outras entidades quiserem proceder a trabalhos de manutenção de menor dimensão (como aqueles que têm vindo a ser falados recentemente), a lei não obriga a que seja garantido esse acompanhamento. Ora, sem o olhar atento daqueles que trabalham pela salvaguarda deste património, não só podem estar comprometidos o reconhecimento e a defesa de eventuais novos achados, como a probabilidade de se arrasar sítios arqueológicos já identificados (mas não sinalizados) é muito maior.

Qual é, então, a melhor forma de ajudar a preservar este património? “Divulgá-lo!”, responde Tiago, prontamente. “Junto dos pescadores, dos mariscadores e das comunidades da Ria. É fundamental que todos saibam que estão lá”, sublinha o arqueólogo. Uma das “medidas mais simples” passa por “inscrever nos PDM – Planos Diretores Municipais – os sítios arqueológicos subaquáticos já conhecidos e usar a legislação para a sua defesa e salvaguarda”. Depois, “é preciso que haja sinalização e que estes sítios vão também parar às cartas náuticas e aos avisos de navegação para que os utilizadores da Ria, por desconhecimento, não larguem âncoras nesses locais”.

Nalguns casos, lembra Tiago, outra maneira de garantir a integridade dos achados é trazê-los para terra. No entanto, “há coisas que ficam melhor no fundo da Ria”, avisa. “Retirar é um compromisso para a vida. Há artefactos que, ao serem retirados destes meios, passarão a necessitar de trabalho de conservação permanente. Se deixarem de ser conservados, destruir-se-ão em poucas semanas”. E ainda há outro aspeto a ter em atenção: se, por norma, remover vestígios do casco de um navio até é pode ser uma operação concretizável, quando se trata de sítios arqueológicos subaquáticos “com muros e fundações” ou em que a mancha de artefactos encontrados é extensa, o grau de complexidade da intervenção aumenta consideravelmente. Nesses casos, “é mais fácil mantê-los onde estão e reservar a área”, reitera o arqueólogo, realçando que, “atualmente, com as ferramentas virtuais de realidade aumentada, não há desculpas para não se darem a conhecer estes locais”. Haja vontade e criatividade.

Sabendo do potencial da Ria de Aveiro, Tiago Fraga via viabilidade numa aposta em turismo subaquático na região. “Há mercado, só é preciso saber atraí-lo”, acredita o arqueólogo. “A imagem mais comum do mergulho turístico inclui praias paradisíacas e peixinhos coloridos, mas o mercado do mergulho é muito mais vasto. Há pessoas a mergulhar no mar do Norte, com água a 3 ou 4 graus centígrados, em locais que a visibilidade média é de poucos centímetros; os alemães até em barragens mergulham”, atira, a título de exemplo.

Tiago Fraga nasceu na ilha de São Miguel (Açores), mas mudou-se para o continente com apenas 4 anos. Aos seis, já sabia que queria ser arqueólogo: “Fazia uma coisa que os meus pais odiavam: enterrava os brinquedos e depois divertia-me a escavá-los. Perdi muitos deles”, lembra, com um misto de orgulho e embaraço. Se a vocação pela arqueologia surgiu na infância, a razão de se ter especializado na vertente náutica tem uma origem um pouco mais rebuscada. Tudo começou com uma escadaria bifurcada e uma intuição inexplicável.

Estava a concluir a licenciatura em Arqueologia pela Universidade Lusíada de Lisboa quando o professor Luís Raposo lhe propôs um estágio no IPA - Instituto Português de Arqueologia . As instruções pareciam claras: dirigir-se às instalações do IPA, em Belém, e apresentar-se ao serviço. Contudo, à chegada, e sem saber ao certo ao que ia, o jovem estudante ter-se-á deparado com “uma escadaria em Y” e “uma decisão em mãos”. Optou, talvez por instinto, pela porta da direita. Pediu para entrar, apresentou-se como “o estagiário que o professor Raposo tinha mandado para ali” e foi acolhido com entusiasmo e confiança. “Tinha acabado de entrar no COAS – Centro de Operações para Arqueologia Subaquática –, que estava a trabalhar num projeto pioneiro de arqueologia subaquática no âmbito da Expo 98 e que, já comigo na equipa original, daria depois lugar ao CNANS - Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática. Foi lá que cumpri o estágio e que comecei a minha carreira. Na verdade, a intenção do docente era integrá-lo num projeto relacionado com as ruínas de Conímbriga, mas só vários anos depois, quando já era técnico superior daquele centro, é que Tiago se apercebeu do engano ao reencontrar casualmente o professor num restaurante. “Era na outra porta”, conta.

Com mais de duas centenas de intervenções arqueológicas e quatro direções científicas internacionais no currículo, Tiago já percorreu toda a costa portuguesa (continental e insular); fez mestrado na universidade A&M, no Texas, Estados Unidos e já trabalhou em quase todos os oceanos; só no âmbito da sua empresa, criada em 2015, conta com quase 90 intervenções de arqueologia preventiva em Portugal e no estrangeiro. De todas as escavações em que já esteve envolvido, a que lhe deu “mais gosto e mais luta” foi a Santo António de Tanná, uma fragata portuguesa do século XVII, naufragada ao largo da antiga fortaleza de Mombaça, no Quénia, porque me fez reapreciar o que é ser português e querer regressar ao meu país”. “A fragata portuguesa é diferente de todas as fragatas do mundo. Chamo-lhe ‘fragata mercante’, uma designação atribuída por mim e que, durante anos, foi alvo de troça pelos meus pares. Com o tempo, lá foram aceitando a ideia e agora até sou bastante citado”. Naquela época, os portugueses deparavam-se com o problema de a sua rede comercial marítima ser grande demais para a capacidade de policiamento de que o país dispunha. Solução? “Inventaram um barco que servia simultaneamente para a guerra e para o transporte de mercadorias, uma invenção que lhes permitiu manter a hegemonia dos mares por mais 150 anos, mesmo quando os ingleses lhes estavam a morder os calcanhares”, resume o arqueólogo. “Este espírito obstinado e inventivo que – presumo eu – é inerente à cultura portuguesa desde o início da nacionalidade, encantou-me. É um traço de personalidade desvalorizado por nós, mas muito valorizado lá fora. O desenrascanço devia ser tesouro nacional”.

Por muito que tente, Tiago Fraga não se imagina a fazer outra coisa. Aos 45 anos, encara a arqueologia não tanto como uma profissão, mas mais como um desígnio de vida: “Quero continuar na linha da frente da salvaguarda da cultura material. É meu dever enquanto arqueólogo e enquanto cidadão que gosta muito do seu país”. Tiago vê os arqueólogos como profissionais “capazes de construir narrativas, de supor para que é que determinado objeto servia, quem é que o fabricou, quem é que o utilizou e quem é que chorou baba e ranho quando o perdeu num naufrágio”. “Os arqueólogos não escavam cacos, escavam pessoas”, acrescenta. “A arqueologia estuda a vida humana através da cultura imaterial” que, jura, “ao contrário dos livros de História, nunca mente”.

*Fotos: Afonso Ré Lau

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