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Do Brexit, com amor

Opinião

Aveiro por um canudo

Ivar Corceiro*

Ao balcão do bar estão dois ingleses a discutir o Brexit. Hoje é dia de festa para todos os que lutaram pela saída do Reino Unido da União Europeia e um deles veste um casaco de motoqueiro com a Union Jack nas costas. Estão felizes e vão somando pints duma cerveja qualquer, cujos copos vazios se amontoam numa pequena e serpenteada pilha em cima do balcão.

Na mesa ao lado da minha duas mulheres de alguma idade mantêm-se ausentes dessa discussão e uma delas, que sabe que eu sou português porque já falámos em noites passadas, olha para mim de esguelha sempre que um deles diz que finalmente os imigrantes se vão embora. Eu sorrio-lhe, mas não digo nada. É apenas a minha forma de lhe agradecer o que percebo ser uma preocupação para comigo.

Estou sozinho numa mesa a meio do pequeno pub e divido o meu tempo entre o telemóvel, um livro e olhares de soslaio sobre os demais. Há ainda outro homem, que talvez já tenha bebido demasiado e que vai dizendo coisas imperceptíveis para o vazio. É novo e reparo que tem uma camisola preta vestida do avesso. Por um instante liberto a minha mente para que a minha memória possa regressar a Aveiro e à minha infância. Por qualquer motivo, é o que faço quando me sinto só.

Aos domingos de manhã o meu pai pedia-me para ir à taverna do Seabra comprar um maço de tabaco e o jornal, que podia ser o Comércio do Porto, o Primeiro de Janeiro ou o Jornal de Notícias. A minha altura não me permitia ainda apoiar as mãos no balcão enquanto esperava ser atendido, mas era o suficiente para espreitar para a sala das traseiras onde alguns homens costumavam beber vinho a copo desde cedo e discutir trivialidades de forma acalorada.

Era dessa sala que o Seabra vinha atender-me quando percebia que havia uma criança do outro lado do balcão e me tratava por “menino” a cada pergunta que fazia: “Bom dia, menino!”, “Que queres, menino?”. Eu repetia o pedido que o meu pai me tinha feito e acrescentava uma pastilha elástica ou, em dias de maior calor, uma gasosa a copo. Um deles, quando estava bêbado, sentava-se num dos velhos bancos de madeira e costumava cantar sozinho.

Sobre a taverna do Seabra às vezes voltava ali mesmo antes do almoço para comprar dois frangos de churrasco, que em conjunto com algumas batatas fritas e uma salada de tomate e alface feitas pela minha mãe seriam o almoço de toda a família. Os frangos eram preparados num jardim interior pela mulher do Seabra, o que me obrigava a passar pelos homens que bebiam vinho.

Foi num desses momentos que aproveitei para ver de perto o homem que costumava cantar. Parecia tudo menos uma estrela da música, mas a voz saía-lhe tímida da boca como um canto a sair dum profundo poço de solidão e, enquanto os outros continuavam a discutir, ele ia trauteando sons para um público inexistente.

De certa forma, sem ter essa noção na altura, acredito que foi com ele que testemunhei o que é sentir solidão estando entre outras pessoas e lembrei-me dele várias vezes durante a minha vida de adulto, principalmente depois que emigrei. Lembro-me do que ele me disse quando percebeu que era o seu único ouvinte: “esta vida é triste, menino!”. Respondi-lhe que não: “não é nada!”

No meu bairro existiam ainda mais duas lojas onde era possível comprar bens de consumo: a mercearia do senhor Orlando, onde a minha mãe abastecia a despensa todos os fins de tarde, e o minimercado do Samico, onde qualquer um de nós ia buscar leite e pão. Entre estas duas lojas funcionava ainda o Chico das Bicicletas.

O senhor Chico nunca me levava dinheiro para encher os pneus da minha Vilar. Às vezes até me pedia mais dez minutos para alinhar a direcção ou afinar os travões. Para mim aquilo não era bem um negócio, mas sim uma presença natural no bairro. Tão natural, aliás, como o ar que eu respirava. O único pagamento que ele levava era assim o meu “Obrigado, senhor Chico!”.

Dou-me conta que, de certa forma, cresci num mundo onde todos sabiam o nome de todos e até as lojas tinham o nome das pessoas. Podia existir o sentimento de solidão mas ninguém estava verdadeiramente sozinho.

Dou agora um gole generoso na minha pint de Guiness. A voz desse homem que cantava no Seabra há pouco mais de quarenta anos repete-se dentro de mim e vai-se apagando lentamente enquanto cresce outra melodia igualmente alcoolizada. É o homem que tem a camisola do avesso e que agora canta em vez de falar apenas. Fixo-o nos olhos. “Life is so Sad!”, diz-me. “No, it´s not!”, respondo.

Os dois adeptos do Brexit também estão um pouco mais eufóricos e a pilha de copos no balcão cresceu um pouco. A vida não é triste, de facto, mas às vezes tenho a sensação que todos fazemos para que o seja.

* O Ivar Corceiro é um entre muitos aveirenses que vive fora do país. Escreve regularmente sobre esta experiência de ver “Aveiro por um canudo”
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