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Sábado à tarde no Cineteatro Avenida

Opinião

Virgílio António Nogueira

Regressaria àquele lugar numerado, à cadeira com os apoios laterais que suportavam os cotovelos e ficaria ali a ver o filme que na época oferecia uma aventura empolgante e agora, à consciência adulta, tratar-se-ia antes de uma coboiada com diálogos monótonos e desfecho previsível. Retornaria, para vos saber jovens e poder ter a possibilidade de nos reviver sem a ânsia do futuro, sem o medo que controla as vidas, essa ideia angustiante que resumias na frase “ninguém sabe o dia de amanhã”. Queria voltar a sair com esses meninos e ter na mão o passe comprado na bilheteira, talvez ao postigo, para entrar no edifício com os amiguinhos que então também não deviam ter altura para chegar à prateleira do cimo da estante, que não pesavam na balança os quilos suficientes para precisarem de reprimir o apetite.

Estaria feliz nessa tarde de sábado, não recordo de que mês, pois vocês estavam todos em casa, a usufruir do tempo de recreio que o fim de semana traz, a limpar a louça do almoço, com o pano branco, e a arrumá-la no armário da cozinha, de portas beges, e nas gavetas, pintadas da mesma cor, que ladeavam o fogão. Depois, sairiam com as meninas para a Gafanha da Nazaré e a costureira mediria ao centímetro o tecido necessário para os vestidos que usariam na estação do ano que se aproximava. Passariam pelo Forte da Barra e avistavam o mar na Costa Nova, fazendo planos para as férias de agosto, um mês inteiro para seguir pelas estradas, algum desse alcatrão ou do empedrado partilhado com o pelotão da Volta a Portugal, que no verão animava o país e tornava heróis os ciclistas em fuga ou os que melhor trepavam as montanhas debaixo do calor abrasor do estio português.

Regressaria àquele lugar numerado, ao Cineteatro Avenida, subiria os degraus que disfarçam lábios grossos e entraria pela boca gigante, acedendo à majestade dos espaços amplos, sentindo cada passo solene na escadaria, olhando por uma das janelas para a cidade que, lá fora, estagnava na quietude da maré. O momento sabia à aristocracia do palácio real tomado pelo povo, um instante de nobreza oferecido pelo encanto da arquitetura e dos adereços do imóvel.

Enquanto víamos as imagens de uma paisagem distante e líamos as legendas da película, os terraços das traseiras das nossas casas brilhavam com o sol que o edifício Vera-Cruz viria mais tarde, a cada andar construído, a transformar em sombra maior. A bola de futebol descansava no pátio e assim o jarrão da China da vizinha não corria o perigo que ela imaginava para o património advindo de uma olaria mandarim.

Não teríamos, na época, bem presente que naquela sala em que assistíamos ao duelo entre o bem e o mal, esse confronto, anos antes, era mais do que a ficção realizada em Hollywood para entreter gaiatos.

No palco, o ecrã coberto pela cortina, estavam personalidades políticas em luta pela democracia. Gente corajosa que sujeitou aos bastões das forças repressivas a carne e os ossos em nome dos valores que perfilhavam, fosse no Aljube, no Forte de Peniche ou na Avenida Dr. Lourenço Peixinho. Eram os ilustres organizadores, oradores e participantes do III Congresso da Oposição Democrática.

No domingo de manhã, 8 de abril de 1973, preparavam-se para a romagem ao cemitério central e assim homenagear o Dr. Mário Sacramento, médico e escritor, impulsionador dos dois congressos anteriores que haviam decorrido no Teatro Aveirense. Caminhados poucos metros da avenida, as autoridades avançaram contra a multidão e usaram de violência e espancaram, espezinharam, gente pacífica e indefesa que sofria com essa crueldade a vontade de construir uma sociedade aberta, plural, mais justa e digna.

Entre 4 e 8 de abril de 1973, tínhamos nós meia dúzia de anos de vida, se tanto, e o auditório do Avenida e as salas adjacentes encheram-se de mulheres e homens, de muitos dos democratas portugueses, que ali se reuniram para definir um conjunto de teses visando a transformação política, social e económica de Portugal e que teria utilidade no programa do governo que emergiu da Revolução de 25 de abril de 1974.

Aceitando adicionar-lhe um pouco de poesia e romancear o acontecimento, dir-se-ia que o certame traria a brisa da ria e o vento do atlântico ao país. O sopro de ar puro que expurgasse o bafio das públicas virtudes e dos vícios privados, capaz de retirar o bolor dos dogmas do 28 de maio sobre o pão cozido com os cereais da república e restituísse a soberania esboroada, a perder-se nas guerras civis, a derrear as esperanças da juventude na chacina do ultramar.

A Comissão Executiva do Congresso compôs-se por um conjunto de aveirenses notáveis. Álvaro Seiça Neves, António Neto Brandão, António Pinho Regala, Carlos Candal, Flávio Sardo, João Sarabando, Joaquim da Silveira, Manuel Andrade e Mário Bastos Rodrigues. Continuam como narradores deste e de episódios igualmente importantes e os outros, que a morte levou, continuam vivos na memória coletiva, na toponímia da cidade, que deve honrar os que, como António Regala, estiveram na luta contra o antigo regime e que dirigiram e defenderam desinteressadamente, do pecúlio pessoal, algumas das instituições mais relevantes do Concelho e da Região aveirenses.

Regressaria àquele lugar numerado, ao Avenida que esteve orgulhosamente no mapa que conduziu à revolução dos cravos genuínos e aos falsificados dos oportunistas de circunstância. O cineteatro daqueles rapazinhos figurava já como casa relevante no percurso da democracia e do Estado de Direito. Ficava como lugar emblemático na história portuguesa: santuário de cidadania, chão e espaço de acolhimento de evento significativo e incontornável da interpretação e da mudança de Portugal no século XX. O papel de Aveiro, cujo brasão da cidade o prédio ostenta na manga, nas lutas pela liberdade e contra o absolutismo e o totalitarismo tem no Avenida um símbolo.

Lugar simbólico e físico que as políticas públicas podem resgatar em ordem a recolocá-lo ao serviço do desenvolvimento cultural, social e económico da comunidade, afinal os objetivos que estariam inscritos na certidão de nascimento, datada de 1949. A majestade arquitetónica e decorativa da propriedade, da autoria do Arq.º Raúl Rodrigues Lima, requer ser mais do que a atual fachada oca de povoação de estúdio cinematográfico. Seria excelente reabitá-lo, conceder-lhe nova utilidade e oferecer futuro ao Avenida, compreendidos os interesses públicos e privados em causa. A cidade não pode desistir do charme, do cosmopolitismo e da capitalidade do edifício. Não se tratam de fundações, paredes e telhado, são memória e história com vidas dentro.

Sairíamos do cinema, do lugar numerado, com as lembranças frescas dos tiroteios, dos vilões subjugados, por fim, à razão dos bons da fita e tomámos o caminho das nossas casas, sabendo o que responder se nos perguntassem sobre o enredo do western. Para trás ficava o esplendor da tarde, os fantasmas de celuloide, a fachada do Avenida que não piscava os olhos recebendo a luz do fim de tarde que lhe batia na face virada a poente.

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