A camisa era cinza de um claro gasto pelo tempo. Abotoada até cima, não vá uma constipação de verão instalar-se naquele corpo que hoje é frágil. Comprou-a ainda na década de 60 para levar a um casamento de um primo afastado. A camisola de lã que trazia era de um verde desbotado, tingida no peito e puída nos cotovelos. Umas mãos como a cara, gretadas de sulcos e com um bronze de sol a sol, seguram tremulamente um cigarro.
O nervoso aparente de ver o tempo passar, fazem-no bater, a espaços, na mesa de madeira velha como ele, onde a Vera e o Robert juraram amor com a ponta de uma faca. Regressa sempre a esta mesa, porque tem com ela uma relação de cumplicidade. Quando aqui vem regressa a casa quando sai da mesma.
Um chapéu preto, de feltro, com uma tira cinza, coçado, mas usado com o orgulho altivo de outros tempos, esconde uma calvície compensada pelo bigode bem aparado. A barba não está melhor desfeita porque se adivinha uma lâmina também ela anciã.
A mão continua a bater… a espaços.
Acende outro cigarro…companhia de uma vida que se vai apagando, lentamente, porque fica esquecido num cinzeiro de barro cor de sangue.
Os olhos contam mais histórias do que a voz consegue, contam o passado. Contam quando ele importava. A tristeza do olhar não é mais do que melancolia, esse sentimento atordoante que adormece os velhos horas a fio. Dias longos…demasiado longos.
Sempre com o olhar, convida-me a sentar. Penso que percebe que o observo. Assim que me sento à sua frente, inclina ligeiramente a cabeça como que agradecendo as conversas que vamos manter em silêncio.
Partilhamos dois vícios, o cigarro e o ouvir as conversas dos outros. O tema é cansativamente absurdo. Discutem-se frases , caras, culpas e erros de uns cartazes que por aí poluem paisagens e conversas mais interessantes.
Não sabe do que falam, porque não aprendeu a ler.
O Vicente, neto que herdou o nome da costa onde nasceu, e que não veio este ano para lhe ler o jornal que hoje se limita a olhar, vive agora em Aveiro, cidade do vento e dos canais. E apesar de confiar no neto quando lhe diz que é cidade bonita, prefere ter os pés na terra, e não em moliceiros sem proa, prefere pezinhos de coentrada a enguias de escabeche e sericaia a ovos moles.
Sente-se que sente a falta dele.
Um resto de voz elucida-me, “ parece que são todos iguais”.
Sábia esta simplicidade de quem vive a contar com pouco mais do que consigo mesmo.
É-lhe indiferente quem vai amparar Portugal. É-lhe indiferente quem vais prestar os próximos cuidados continuados a esta espécie de país que terminalmente se deixa morrer.
Habituou-se a ser ele o dono do próprio destino. Acendeu outro cigarro. A mão continua a tremer …
Apercebo-me neste instante que tenho todo o Alentejo à minha frente.
Boa viagem Sr. Joaquim.