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Sameiro e o ano da prisão de Ricardo Reis

Opinião

 

Sameiro conheceu Ricardo Reis na cela, ainda a PSP guardava os cidadãos perniciosos à sociedade na masmorra da esquadra que aproveitava o antigo convento carmelita. A reclusão forçada pela autoridade, contrastaria com a das religiosas que, no passado, se refugiavam da frivolidade mundana, enclausurando-se, deliberadamente, no edifício e focando o devir na veneração e no agradecimento ao Criador.

A posse de uma pepita de haxixe, que mal chegaria a um grama, foi à época o ilícito suficiente para que o agente Freddie Mercury caçasse o Sameiro. Meteu o rapaz no calabouço por um nada do universo e prostrá-lo-ia à sentença condenatória do juiz que a vinda do Papa a Portugal amnistiaria. 

O peso da droga e o cárcere, por um lado, e o vexame da pena, por outro, eram desproporcionais; o extrato de cannabis relaxaria o sistema nervoso do jovem adulto, deixava-lhe a boca seca e a arrastar as palavras, situação sem gravidade clínica ou repercussão social, gerando um quadro mental que em nada se pudesse comparar à epifania, à alucinação, por que tanta gente passa sem recurso a substâncias estupefacientes.

O Sameiro não trazia o bilhete de identidade no bolso e, indocumentado, facilitou a missão do polícia invocar a lei e empurrá-lo para o interior da viatura descaraterizada. Cuspiram-no para o branco de trás da Peugeot cinzenta, fingiram que não o ouviram quando ele tentava negociar, em termos que se poderiam considerar ridículos: “passa para cá o naco e esquecemos esta cena!”

Quando o polícia à paisana acabou de rir, já as mãos do Sameiro conheciam a grossura das grades e as costas sentiram o desconforto do colchão que não sabia se enchido de palha ou de cimento. “Cabrão do bófia…”.

Ricardo Reis, por sua vez, estava detido por roubar a esperança na eternidade. Na rusga feita a sua casa os polícias encontraram vários documentos que o incriminavam. Poemas que visavam assassinar a ideia da vida depois da morte, privando-a a toda a humanidade.

No momento da captura o indivíduo estava ao alto escrevinhando sobre a cómoda. “Capitão venha ver o plano que este criminoso gizou!”. O homem ruivo, de ombros largos assomou, leu o papel e mirou os olhos de Ricardo Reis: “Não consentem os deuses mais que a vida…”. A face reuniu os músculos para exprimir repulsa e do cérebro desfaleceu a ave que não suportou o céu frio de inverno: “Como tu, indigente, te atreves a delírios metafísicos? Quem és tu para apoucar a ressurreição? Miserável, queres provocar uma crise moral? Não te nasce a bolha do remorso quando subtrais o julgamento final? Há mais vida para lá do paganismo e das mitologias, é uma questão de lógica, idiota. Achas, então, que o humano que agir bem ou o que agir mal terão o mesmo desfecho após o último juízo? Haverá prémio ou condenação. A narrativa não pode acabar nessa morte, Deus consente mais do que a vida! Percebeste o que te disse? Sim, desgraçado?”

O graduado tomou nota de outros crimes que poderiam estar em causa: o tráfico de influência das filosofias helénicas, a corrupção ética da jovem Lídia, e conservou junto a outras evidências o mapa do rio em cujas águas o meliante lavava as provas da psicologização do tempo.

Atrás das grades, Sameiro apercebeu-se do companheiro de condição prisional deitado no beliche de cima. Não sabia se dormia e domou a voz para anular os decibéis excessivos que o acordariam: “Tudo bem, meu?”. Ricardo Reis ouviu-o, deslocou a face para que pudesse ver o cabelo reluzente, puxado para trás da testa por um gel que lhe garantia fixidez. A negrura capilar mais evidenciava a palidez do rosto que tendo traços largos, e másculos, mostrava uma boca pequena, feminina, de lábios recatados, recolhidos no interior não visível.

“Olá, sou o Ricardo Reis. Estou bem aqui, estaria igualmente cómodo em qualquer outro lugar. Afinal, do que valeria rebelar-me contra as circunstâncias? Tenho um feitio moderado, talvez seja até mesmo uma vida resignada”.

O Sameiro ficou a tentar espremer as palavras que escutara e concluiu: “oh, é naquela!”

No piso superior o comandante pergunta ao capitão pelo Ricardo Reis. “Está já a viver a penitência, em convívio com o Sameiro, dois desvairados em tão curtos metros quadrados. As moscas revelam nervosismo quando pressentem a tempestade”, atirou a frase tentando acertar com a corrente de ar na vespa que se atravessou, em voo lento, à frente da boca e dos olhos.

“Capitão, o cerco ao cabecilha, o Fernando Pessoa, está a apertar-se. Temos de fazer este Ricardo cantar, apertar-lhe a cauda para forçá-lo a piar tudo o que sabe, mas o tipo parece um pássaro mudo e, às vezes, dá ares de estar mais morto que vivo”, confidenciou o comandante e apontou para o quadro em que expunha com fotografias e setas a hierarquia da organização.

O comandante perorou ainda: “As igrejas pressionam o Ministro dos Assuntos Espirituais e o tipo dá-me cabo da mona. A criminalização da ausência de fé e da especulação filosófica está a reclamar muitas horas de homens ao serviço, sucedem-se os turnos de vigilâncias, as brigadas das detenções não param, precisamos de mais equipas, de esquadrões com indivíduos de forte estatura teológica. Ainda por cima, temos que aturar estes pequenos sameiros e as pedrinhas que trazem entropia ao processo, desaceleram o sistema sem a mínima vantagem. O Freddie Mercury continua fora de órbita, sempre preocupado com essa arraia miúda. Um indolente armado em xerife, um estupor!”.

O Sameiro pediu ao guarda um segundo pão com manteiga, que não sabia se a solicitação trazia o veneno da provocação ou era genuína a inocência do miúdo, na dúvida ripostou em tom hostil: “Não está num hotel, Senhor Sameiro. Já lhe demos a refeição com os bens previstos no regulamento. Não me faça, mais nenhuma vez, pensar que sou o empregado de mesa da pensão. Tenha juízo”.

 

 

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Ricardo Reis ofereceu a sua carcaça ao colega de sortilégio e o Sameiro comeu-a, apanhando as migalhas que se esfarelaram da unidade, todas mergulhariam no estômago que continuaria a detetar vazio.

“Não tens fome, meu?”, perguntou o Sameiro. “Não, raramente tenho. O apetite é tantas vezes uma reação ansiosa do organismo, a vontade gulosa e gananciosa de acumular para o futuro. Vivamos o presente com frugalidade, os dias vindouros retiram a beleza ao ócio do quotidiano e à experiência maravilhosa do aqui e agora.” A resposta de Ricardo Reis motivou a pergunta de Sameiro: “Curtes cultura, meu?”. O interlocutor sorriu e anuiu: “Sou um médico, um velho desconfiado de tudo que diga respeito ao homem e não caiba na anatomia. Por isso, renego o espírito humano como a entidade que nos substituiria, como réplica, na ressurreição. Não existe ressurreição! Distinto é o espírito que pensa sobre si mesmo e, refletindo, se autonomiza em alma humana, na casa figurada ou abstrata em que mora a cultura”.

Sameiro foi espiar as borbulhas no espelho, ficando preocupado com a sua reprodução na face, teria de reduzir a opção pelos alimentos enlatados. Ricardo Reis deitou-se, novamente, a visão tinha a fronteira do teto branco, mas a imaginação ultrapassava essa alfândega e entrava nos céus sobre os territórios helénicos e romanos. Adentrava nos firmamentos em que os mitos se eternizavam e a poesia era incorruptível, assegurando-lhe a tranquilidade e a coragem que fazem a vivência sóbria, alheia ao êxtase, à ambição e à necessidade de fazer o mal e de obter ulterior redenção.

 

 

 

 

 

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