Mungo só pode contar com Jodie, pois a mãe, tal como a mãe de Shuggie Bain, é alcoólica, vive de empregos precários que a deixam, muitas vezes, sem dinheiro para sustentar a casa, e na ilusão de uma beleza e juventude que a fazem saltar de relação em relação, com a promessa de amor, mas que alám de a afastarem cada vez mais dos filhos, a conduzem sempre para momentos de desilusão e depressão.
Douglas Stuart tem uma capacidade muito especial de entrelaçar a história das personagens no tempo e no contexto, tão determinantes naquilo que são e no que se espera delas, e conta a crise que se vivia na Escócia e a forma como o país sentia que o Reino Unido tratava a economia escocesa e os escoceses. “Pois. Glasgow foi à vida. Não há nem carvão, nem aço, nem ferrovia, nem a porra dos estaleiros.” Os desempregados e os mais pobres viviam em permanente revolta e, desconhecendo os oatuais protagonistas das decisões económicas que os tinham colocado naquela situação, os escoceses tinham bem presente uma ideia: a culpa era de Margaret Thatcer! “Margaret Thatcher já não era a primeira-ministra havia uns anos, até Mungo sabia disso. Ainda assim, todas as conversas sobre o desemprego e o futuro ainda centravam a fúria nela.”
O que mais me espanta e encanta neste genial autor é a sua fantástica capacidade de encontrar amor e ternura no meio do caos. Tal como em “Shuggie Bain”, também aqui, um dos elementos mais importantes do romance é o amor (incompreensível para tantos) de um filho que tudo dá a uma mãe que nada oferece, mas alem deste amor, assistimos neste livro ao despertar do amor de Mungo por James, um rapaz católico, também de uma família monoparental, também ele negligenciado pelo pai, mas, ainda assim, com mais estrutura do que a família de Mungo. Com toda a beleza que tem o amor dos adolescentes, este amor tem que lidar com a rivalidade religiosa e sobretudo com o preconceito de ambas as famílias. “Não havia maior vergonha que ser panilas: um incapaz, mole como as mulheres”.
James é para Mungo, o seu amor e o seu porto seguro. É nos seus braços e na sua casa que Mungo se refugia, procurando o afeto e o amor que só recebe da irmã e fugindo da vida de negligência e criminalidade em que está profundamente mergulhado. Os obstáculos são grandes mas são todos externos, porque para os dois adolescentes até a questão que os poderia dividir – a religião – está bem resolvida. Aliás, fica claro que nem mesmo os instigadores destas guerrilhas entre católicos e protestantes sabem qual a sua verdadeira causa e justificação – e não é isto que sucede quase sempre e, ainda hoje, nos grandes conflitos? São rivais porque sempre assim foi e, mesmo que as gerações atuais desconheçam a causa da rivalidade, perpetua-se a luta.... Tantas semelhanças com a atualidade!! “- Quanto à tua outra pergunta, de andarmos à bulha aos católicos. Tem a ver, sei la, coa honra? Co território? Coa reputação? – A bebé esticou-se e agarrou o mindinho de Hamish, que fez um sorriso puro. – Pra ser sincero, não sei. Mas diverte a gente? Foda-se, se diverte.”
Depois da descrição da família e contexto de vida de Mungo, peço-vos agora o exercício de imaginarem Mungo, um adolescente claramente diferente dos que o rodeiam, sensível e terno demais para o contexto em que vivia, e demasiado afastado da violência e raiva que dele se espera? “Tinha uma essência afável que deixava as raparigas à vontade: queriam fazer dele seu animal de estimação. Mas essa mesma doçura perturbava os rapazes.”
Não sabendo como lidar com esta “diferença” a mãe decide entregar o filho a dois “companheiros” dos alcoólicos anónimos, que mal conhece, ex-presidiários e com um passado obscuro, para que sob o pretexto de ensinarem a pescar, levem o seu filho um fim de semana para um lago no Oeste da Escócia e façam dele um homem. “- Vamos tirar-te do bairro. Vais ter um fim de semana à rapaz. Ainda havemos de fazer de ti um homem, hein?”
E para além de ser assustadoramente realista e abjeta esta ideia horrível do que é “ser um homem” e dos requisitos desta masculinidade tóxica, a experiência deste fim-se-semana vai ser profundamente traumatizante: “... considerava como os homens davam amigos estranhos – mas também que a bebida tudo nivela, sempre aproximou pessoas improváveis.” A verdade é que, os dois homens a quem a mãe confia Mungo, acabam por abusar de Mungo e a descrição desses momentos e da violência de que se revestem é profundamente revoltante.
Mais do que esta ideia absurda de pretender fazer de Mungo um homem pela incapacidade da família lidar com a sua sensibilidade e as suas opções, o que mais nos deixa perturbados é a incapacidade da sua mãe, mais uma vez, ser incapaz de o proteger e enviar o filho para um perigo que se vai tornar real e traumatizante para o resto da sua vida. “Algo mudou então para Mungo. Não era daquelas situações em que a mãe dá um beijo e já passou. Também não era um arruaceiro a quem o irmão espetava uma navalha. Ninguém iria conseguir resolver isto com uma tigelinha de sopa. Era ele a arcar com a culpa e a vergonha.”
Este é um momento de viragem na vida de Mungo, onde, mais uma vez, a mãe não o protege e apenas a irmã vai ser capaz de o ajudar. De facto, Jodie é também um surpreendente produto desta vida difícil e deste contexto familiar completamente destruturado mas, ainda assim, acaba por fazer ela o papel de mãe, sem nunca compreender a dedicação que Mungo tem à sua verdadeira mãe, que tantas marcas deixou na educação de Mungo e, ainda assim, este continua a presenteá-la com a sua devoção. “Ela escusava de perguntar se era por causa da Mo-Maw. Tudo neste miúdo era por causa da mãe. Ele vivia para ela de uma maneira que ela nunca vivera para ele.”
Mas apesar da negligencia e da ausência da mãe, percebemos que ela, nos momentos em que esta mais em baixo, vê em Mungo, a sua.... ainda assim.... esperança na salvação. Mungo “era o caçula da Mo-Maw, mas também dela, sua aia e confidente. O único espelho que a favorecia, o seu diário adolescente, o cobertor elétrico, o capacho da entrada. O seu melhor amigo, o cão que ela raramente passeava e a sua maior história de amor. O seu gáudio numa mãnha cinzentona, a única gargalhada do público dela.” “O irmão era a lua secundaria da mãe, o seu sol mais quente, e, ao mesmo tempo, um satelitezinho pequenino que ela descurara. Orbitava nela uma eternidade, mesmo enquanto ela, e depois ele, se destruíam.”
Se a figura do irmão, não me merece aqui grande destaque – por ser o resultado expectável num bairro como aquele e o produto da mãe que (não) teve, a irmã surpreende pela sua capacidade e determinação em querer sair do bairro e não se permitir cair nos erros e mas escolhas da mãe. “Jodie tinha a coragem invulgar de uma miúda que acreditava que um homem nunca lhe iria bater – o que era estranho, pois os três irmãos tinham todos visto a mãe sofrer às mãos dos namorados.” De facto, Jodie, apesar de todas as suas contrariedades, consegue sair do bairro e dar asas aos seus sonhos, estudar na Universidade e isso parecia impossível para ela.
De facto, tal como Mungo, Jodie é também um exemplo de que a violência não tem que gerar violência e que o contexto, não nos determina, condiciona-nos mas não nos determina! E se a arma de Jodie para fugir da sua realidade é o conhecimento, a de Mungo é o amor, a sua capacidade de encontrar sempre pedaços de coisas boas em todos os que o rodeiam. “Em qualquer outra altura, Mungo teria defendido a mãe. Esse era o papel dele na tragédia familiar: encontrar as sobras da bondade de Mo-Maw e andar sempre a lembrar os irmãos disso.”
Creio já vos ter dado argumentos suficientes para lerem este livro, onde o amor supera as barreiras religiosas – e como é importante que o mundo saiba disso – e a violência pode ser combatida e afastada com o coração e a bondade, como faz Mungo, ou com a cabeça e determinação, como faz Jodie. “É difícil descrever uma mãe. Só temos uma, não temos ponto de comparação e não é como um forno novo, não vem com uma lista de especificações.”
Acreditem que, se surpreenderem algum amigo com esta prenda de Natal, será uma prenda da qual ele não se esquecerá!
Boas leituras e vemo-nos nas próximas páginas.