Privatizamos a existência. De casa para a garagem, para o automóvel, para o trabalho, para o automóvel, para a garagem, para casa. Ao fim de semana, circulamos por ruas privadas, devidamente climatizadas e asséticas, entre fachadas exclusivamente de vidro, compostas por lojas geminadas à exaustão de um centro comercial da periferia ou do hipermercado encastrado num edifício abarracado de grandes dimensões. Construção apenas destinada a ser habitada pelo interior, o privado, e desfigurada pelo exterior, a paisagem urbana pública.
Talvez por isto não se construam jardins urbanos há mais de 60 anos, nas cidades portuguesas.
Entretanto, a vitalidade da rua e a proximidade do desejo se torna longínqua pelo definhar do comércio local.
Morremos mais tarde, mas adoecemos mais cedo e não havia necessidade. Não prevenimos a doença porque a política pública está muito encostada à privada. Caminhar na cidade não dá lucro e não nos contentamos, enquanto sociedade, em reduzir despesa. O lucro é privado, a redução da despesa é pública. Obesidade, sedentarismo e, consequentemente, problemas do foro respiratório ou cardio-vascular, estão a ser pensados nos laboratórios farmacêuticos e não, em local próprio: no espaço público, nas redes pedonais e ciciáveis, nos contínuos verdes e azuis.
Também já não somos nacionais de uma nação, nem de muitas, somos multinacionais sem país. As bandeiras desfraldadas nos edifícios públicos e equipamentos, em todos os países, foram cerzidas na China e fazem com que os hinos nacionais sejam música para cantar no início dos jogos da seleção, com bancadas cheias de clientes do Continente, com compras acima de trinta euros.
Caminhar pela cidade é um ato de liberdade e libertário, mesmo que apenas de casa para o trabalho e regresso. O caminho que se caminha, preserva os cafés, as livrarias, o cinema de rua. A menos que a opção tirar o café com uma cápsula na máquina de casa ou do trabalho, se tateie as palavras a partir de um ecrã sem manusear os livros, ou se tente imaginar cinema a partir do modelo repetitivo de séries de canais televisivos próprios. Entretanto, a utilização do rico vocabulário que possuímos tem vindo a reduzir dramaticamente. E com a diluição do uso das palavras, diminuímo-nos a nós próprios.
Vivemos dentro de paradoxos pasmados. Faz-se algo e depois fingimos surpresa com o resultado. Por exemplo, estamos numa fila de automóveis a praguejar contra a imobilidade a que estamos sujeitos sem pensar que fazemos parte, estamos lá, somos um entre os outros que a causam.
Mais grave, é conversarmos sobre o quanto era belo o tempo da infância em que íamos a pé para a escola, enquanto ignoramos que foi a nossa geração que tornou o caminho das escolas impraticável, pelo modo como privilegiamos o automóvel individual e conferimos, com as nossas velocidades de atropelo, a insegurança inibidora dessa autonomia tão importante na formação dos jovens. Salvador Dali, terá dito, um dia, por aqui e por acolá, que originalidade é o que está na origem. Poderá ser, a partir desta frase, que se possam reinventar os dias e se lhes dê um novo sentido comum.
Por tudo isto, descer ao espaço público, colocar o corpo na rua, assumir a cidade como espaço comum das nossas vidas, caminhar por entre ruas, ruelas e vielas, é uma atitude de enorme expressão política, das maiores que a contemporaneidade nos coloca. Assumirmos a nossa dimensão pública, sermos ao mesmo tempo, nós e o outro. Colocar o corpo no espaço público é a ousadia que confronta e resiste à nossa existência exclusivamente privada.