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O mundo da literatura ficou mais pobre com a morte da “Tchekhov canadiana”

Opinião

No passado dia 13 de maio, o mundo da literatura ficou muito mais pobre com a partida da escritora Alice Ann Munro, aos 92 anos. A escritora canadian foi galardoada com o prémio Nobel da Literatura, em 2013, tendo, quatro anos antes, em 2009, sido distinguida com o Prémio Man Booker Internacional.

Alice Munro destacou-se no leque dos autores galardoados por ter conquistado o Prémio Nobel da Literatura com uma categoria muito especial: o conto! De facto, a autora é fabulosa na forma simples e sem grandes floreados como nos conta grandes histórias, descreve personagens complexas e tão ricas em sentimentos e ensina a encontrar beleza nas histórias de vida mais simples e com as quais sentimos tantas afinidades. Foi precisamente esta habilidade que fez com que ficasse conhecida como a “mestre do conto contemporâneo”. A ousadia que utilizava na sua escrita fez com que a comparassem ao grande escritor russo Anton Tchekov, referindo-se a ela como a “Tchekhov canadiana”.

Este reconhecimento, a comparação com Tchekov e os prémios alcançados já seriam mais do que motivos para lermos os seus contos, mas acreditem que, qualquer descrição que se faça, não será nunca capaz de vos preparar para a surpreendente genialidade dos seus contos. O que mais gosto nos seus livros é o facto de Alice nos fazer olhar para as relações que se vão bordando entre as pessoas, nas mais diversas idades e sob os mais distintos contextos, e nos apresentar tapeçarias maravilhosas, feitas de coisas, pessoas e momentos simples e banais, nem sempre perfeitos, mas que compõem um conjunto maravilhoso. Sem recorrer a eventos fantásticos, a pessoas extraordinárias e a cenários rocambolescos, Alice Munro mostra-nos que a beleza está nas imperfeições das pessoas e na simplicidade com que vivem nessa imperfeição e a aceitam. E, de facto, não há nada mais bonito do que a simplicidade da vida e as relações humanas sem artifícios nem disfarces!

Alice Munro é claramente daquelas autoras que já trazia a literatura na alma quando ainda nem sabia escrever e dá os primeiros passos na escrita ainda adolescente, mantendo-se sempre fiel ao conto e à possibilidade que este género literário oferece de contar muitas pequenas histórias.

As mulheres e as relações que elas estabelecem com os pais, maridos, namorados e com as outras mulheres são um tema muito presente nos seus contos onde, num feminismo muito humanista, sem floreados e preconceitos, Alice nos relata a forma como lidar com a violência, a infidelidade, o sentimento de impotência, a incapacidade de alcançar os sonhos e as proibições e limites que a sociedade, os homens e as outras mulheres, lhes impõem. Da sua vasta obra gosto especialmente da coletânea de contos “Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento”, “Vidas de Meninas e Mulheres” e “Amada vida” porque nestas três obras é possível conhecer a sua irreverência e ousadia, o seu sentido de humor, a sua perspicácia e a forma direta e simples como trata questões sobre as quais tantas vezes gostamos de fazer grandes enredos. Encerradas nos seus contos estão verdadeiras pérolas de sabedoria, válidas na data em que foram escritas e ainda hoje muito atuais. Aliás, a sua contemporaneidade vai fazer-vos sorrir muitas vezes com a semelhança das situações por ela relatadas com outras que vivemos atualmente... e as suas ilações também vos vão fazer pensar.

A escrita de Alice Munro interpela o leitor e não o deixa indiferente e passivo, ela tem a capacidade de não nos deixar dormentes pois escreve sem floreados e transmite-nos, através do seu olhar simples e sincero, a beleza das relações humanas e de uma vida simples e com isto, desperta-nos e desafia-nos a sermos menos marionetas das nossas vidas e mais autores principais destas.

Em “Amada Vida”, Alice deixou ao mundo aquilo que é, para muitos, o seu “testamento literário” e neste livro podemos encontrar um bocadinho da sua vida e dos momentos que transformaram a sua vida, a desafiaram, motivaram e a levaram a seguir outro rumo.

Os contos são sempre uma boa forma de conhecermos muitas histórias e muitas personagens e nesta coletânea, “Amada Vida”, Alice Munro tem como protagonistas pessoas muito diferentes, com vidas distintas, que têm em comum acontecimentos simples que mudaram o rumo das suas vidas.

O primeiro conto relata-nos a história de um poeta que vai, pela primeira vez, a uma festa literária, sem conhecer ninguém, e conhece um outro escritor que a leva numa viagem longa onde tem um inesperado encontro.

No segundo conto, Alice revela um dos temas que aborda muitas vezes, a relação entre um homem e uma mulher e a traição. Nesta história um jovem soldado regressa da Segunda Guerra Mundial para os braços da sua noiva de muitos anos e inesperadamente sai do comboio antes da sua estação. Esta saída do comboio antes do destino tem uma razão – o soldado vai para uma quinta onde está uma mulher com quem vai iniciar a sua vida... e que, contrariamente ao esperado, não é a sua namorada.

A relação amorosa volta a ser o tema do conto seguinte que conta a história de um advogado casado que é contratado por um homem muito rico para gerir os seus bens. O advogado acaba por se envolver com a filha do seu cliente, a herdeira dos seus bens, que sem ser dona de grande beleza o conquista... bem, na verdade, não são os seus atributos que o conquistam, mas sim o seu dinheiro, que através de um enredo por ele criado, para fazer com que a herdeira pague a uma chantagista que descobriu a relação de adultério e que o está a chantagear, mas na verdade tem como destinatário o próprio amante. A história revela-nos assim - mais uma vez, a sua habilidade para abordar as questões do carácter humano – que o verdadeiro chantagista foi o advogado que, com a conivência da mulher, estão a conquistar a herança da jovem apaixonada.

A mulher volta a ser personagem central no seguinte conto, em que a relação entre irmãs é abordada. Neste conto, a autora conta-nos a história de uma rapariga que sofre de insónias e que, todas as noites, imagina que assassina a irmã mais nova das mais diferentes formas.
No último conto a autora apresenta-nos a história de uma mãe e aborda a dimensão e o alcance deste amor. A mãe salva a sua filha no exato momento em que uma mulher tresloucada invade o seu quintal.

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Nestes contos, por muito diferentes que nos possam parecer as personagens, sentimos afinidade com muitas delas e compreendemos que estes acontecimentos podiam ter qualquer um de nós como personagem.

As relações entre um homem e uma mulher, uma mãe e uma filha, duas irmãs, mas sempre o tema das relações, são explorados nestes contos com a objetividade de quem não teme fazer críticas, discutir preconceitos sem fundamento e basear as relações em estereótipos sociais, como acontece, por exemplo, com a “rivalidade” novelesca entre sogra e nora, a qual a autora diz que é necessário desconstruir, para que cada uma possa ter o seu lugar sem sobreposições. “Era a sua maneira de ser, ela levava ao extremo o ato de não reparar. Não reparava, não se intrometia, não dava palpites, embora fosse muito mais hábil do que a nora em todas e quaisquer artes ou competências domésticas.” Não o faz apenas relativamente às mulheres, fá-lo relativamente a qualquer pessoa, a autora desafia o leitor a assumir e revelar a sua individualidade e não se deixar esmagar pelo peso da relação e do peso que esta assume na sociedade.

Não pensem, no entanto, que tudo isto é feito de forma dura e pesada, pois outro traço muito característico da sua escrita é, precisamente, a leveza, a leveza com que a autora nos desafia a ver a vida: “Limitou-se a colorir o episódio e a arrumá-lo no armário dos seus velhos eus. Ou talvez ela seja uma pessoa capaz de acolher com indiferença a humilhação.”

Vão-se surpreender com a atualidade e pertinência das suas reflexões e, ao mesmo tempo, com a dureza e frontalidade com que as mesmas nos são transmitidas: “Certas pessoas percebem tudo mal. Como é que hei-de explicar? Digamos, há gente que teve tudo contra si – que levou pancada uma vez, dez vezes, tanto faz – e acabou por se dar lindamente. Cometem erros desde cedo – fazem cocó nas calças na segunda classe, por exemplo – e depois vivem a vida toda numa vila como a nossa, onde nada é esquecido (em qualquer vila, porque são todas iguais) e safam-se, tornam-se pessoas fortes e alegres, capazes de dizer, e com sinceridade, que por nada deste mundo gostariam de viver noutro lugar.” Achei surpreendente, numa altura como a atual, em que se assiste a uma narrativa tão enraizada de tentar explicar e desculpar todos os comportamentos com o contexto, o passado, a sorte e até ... para os mais esotéricos, com o poder do “mercúrio retrógrado”... a sua lucidez e clareza de espírito que nos diz tão simplesmente isto: não te desculpes com os outros e o contexto, culpa-te por não teres força para sair dele...

E se é verdade que as suas histórias são muito envolventes e impactantes, também não é menos verdade que o seu sentido de humor lhes transmite uma vivacidade e boa disposição que mantêm os leitores atentos. A sua capacidade para encontrar piada em todas as situações são uma das muletas para uma vida feliz e leve: “Não se importava de que a vissem a andar a pé pela vila, apesar de as pessoas se rirem. Isto era no tempo em que caminhar e fazer exercício ainda não estavam na moda.”

Nesta coletânea vemos meninas pequeninas, jovens em fase casadoira, mulheres casadas e até, um amor maduro entre duas pessoas com mais sabedoria que percebem o segredo da vida e das relações... e como têm tanta razão!!! É que, a partir de uma certa idade, o amor “não tem tempo” para chatices nem queixas. “Não podemos dar-nos ao luxo de brigar”, disse ele. Não podíamos de facto. Eu tinha esquecido quão velhos éramos, tinha esquecido tudo. Pensando que havia todo o tempo do mundo para queixas e sofrimentos.”

Esta interpelação constante para que o leitor se torne o protagonista da sua vida e não permita que outros dirijam a peça que esta em cena, é um dos seus maiores apelos: “Não há nada de que ter medo neste mundo, desde que saibamos tomar conta de nós.”

E para finalizar, gostaria de vos deixar aqui uma das passagens mais bonitas e desafiadores desta coletânea de contos, que nos interpela a assumirmos as rédeas da construção da nossa felicidade. “O essencial é ser feliz”, disse ele. “Não importa em quê. Faz um esforço nesse sentido. Vais ver que és capaz. Com o tempo, torna-se cada vez mais fácil. Nada depende em nada das circunstâncias. Nem imaginas como é bom. Aceita tudo, e a tragédia desaparece. Ou pelo menos torna-se mais leve, e de repente estás apenas ali, a caminhar serenamente no mundo.”

Desejo-vos uma boa leitura e que permitam que estes textos vos ajudem a encarar a vida com esta leveza e simplicidade bonita!

Boas leituras!

 

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